Batendo papo com o Marcelo, um amigo meu do Rio, conheci através desse blog e falamos sobre possibilidades de viagens através de programa de milhagens, que nos dois tínhamos. Eu falei sobre viajar pela Transamazônica, ou ir ate o Peru para descer o Rio Amazonas de barco. Ele estava mais propenso a uma viagem internacional e sugeriu Republica Dominicana, que estava com milhas reduzidas. Eu falei que não tinha grandes interesses na Rep Dominicana, mas se desse para atravessar para o Haiti, toparia. Fiz umas pesquisas sobre necessidade de visto para brasileiros, além de ler um ou outro relato de viajantes que foram para la. Retornei o telefonema e ele aceitou a viagem na hora! A Bibi não poderia ir dessa vez, então iríamos eu e o Marcelo (também já experiente com viagens).
Ao chegar em Santo Domingo ainda deu tempo de rodar a parte antiga da cidade, onde existe um festival de ” títulos”. A primeira rua das Américas, a igreja em atividade a mais tempo nas Américas, o forte mais antigo das Américas e por ai vai… A cidade velha tem seu charme, ruas de pedra com iluminarias nas paredes das casas coloniais, além de varias Igrejas. Ate casas onde morou o Cristovão Colombo. Não sei se foi porque viajei por dois meses na América Central no início do ano, ou pelas minhas viagens pela A. do Sul, só sei que o lugar não me cativou. Bonito, ponto. Legal, ponto. Sem superlativos.

St Domingo
Pode ser que a minha ansiedade tenha atrapalhado um pouco, sei que no dia seguinte quando pegamos o ônibus para Porto Príncipe-Haiti, dai sim sentia que a viagem estava começando. Um ônibus de luxo, da empresa brasileira Marcopolo, já mostrava os dois mundos que iríamos presenciar. O valor da passagem, 40 USD, era quase o valor do salário mínimo no Haiti, mas pouquíssimas pessoas tem acesso a este salário.
A viagem é relativamente longa, e com o passar das horas a paisagem vai se modificando. Verde, seco, lagos, mas o que impactou mesmo foi a aproximação da fronteira. Dezenas de containers na beira da estrada, vendendo vários tipos de mercadorias. Muitas pessoas, um mercado improvisado e um pequeno posto de imigração. Carimbo de saída da Rep Dominicana, carimbo de entrada, e estávamos em outro país, depois de ver a cara de espanto do oficial da imigração ao dizermos que estávamos indo a turismo, é claro.

Paisagem

Imigração Haiti

Passamos por acampamentos provisorios-definitivos, por pequenas vilas e com o tempo a zona urbana foi se aproximando. Pessoas vendendo de tudo ao lado da estrada, blocos gigantescos de gelo no meio de serragem chamavam a nossa atenção. Moradias simples e ruas movimentadas. Alguns quartéis de “ajuda” internacional e ao fundo avistamos montanhas, quando nos informaram que já estávamos nas redondezas de Porto Príncipe. Ninguém sabe ao certo onde inicia a cidade, já que ela cresceu tanto que engloba algumas cidades vizinhas. Com a destruição de parte da cidade pelo terremoto em 2010, as pessoas tiveram que se espalhar ainda mais. |
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O ônibus parou em um “terminal privado”, um terreno cercado, que fica ao lado da embaixada americana. Imaginava que a parada seria numa área boa devido a embaixada estar ali, mas estava enganado e deu até aquele friozinho na barriga, tipo´,^ tá, e agora^?! Logo apareceu um taxista, o único autorizado a estar ali dentro e nos ofereceu de levar até o hotel por 60 USD. Inicialmente ignorei e fomos tentar outra alternativa. O Marcelo conseguiu moto-taxis enquanto eu tentava negociar com o taxista, que deve estar acostumado com trabalhadores de ONGs. No final das contas ele xingou as motos que entraram ali sem autorização, cobriu o preço oferecido por eles, mas levando outros passageiros junto. Entramos na caminhonete achando uma fortuna os quinze dólares por pessoa que acertamos, mas logo mudamos de opinião. Primeiro porque era longe e segundo porque não se pode levar em conta somente o custo do combustível. As ruas completamente esburacadas e cheias de poças de agua, um transito caótico, onde vence o mais forte. E o nosso motorista achava que era o mais forte. Buzinava, tirava lascas milimétricas de outros carros, contornava por dentro de postos de gasolina para ganhar alguns metros no engarrafamento. Em alguns momentos comboios de caminhonetes da ONU e de ONGs, com expatriados sérios curtindo um ar condicionado. Mas a realidade fora da bolha deles era outra. A senhora com o bebe de colo teve que se espremer perto do muro quando nosso motorista invadiu a calçada. Nem reclamou, deve ser comum. Quem escutava muita reclamação eram os carros que não davam passagem, se não “colava” no carro da frente para deixar atravessar quem estava perpendicular ‘a rua principal. Eu pensava, “pelo menos estamos indo devagar” quando nosso carro disputa – e vence – um lugar com um trator com sua pá erguida. Ainda tive a oportunidade de ver um carro da polícia levar bronca por não dirigir de acordo com as ” leis” locais e caminhonetes com soldados da ONU, com seus capacetes azuis, coletes a prova de bala e cara de mau. A ida até o hotel demorou cerca de uma hora e meia e no final já estávamos achando que tínhamos feito um bom negocio! Imagine pegar uma moto por aquele trajeto?!! |
Nosso hotel foi um achado. Num bairro tranquilo, ruas de terra ladeira acima, mas uma ótima qualidade. Devido ao grande fluxo de estrangeiros, os hotéis são super inflacionados, se paga muito para receber bem pouco. Foi o hotel mais barato que encontrei, por isto surpreendeu. Agora nós que estávamos numa bolha, totalmente separados do mundo ali fora, mas não por muito tempo. Largamos as coisas e já saímos para explorar o bairro. Crianças se aproximaram e com o reconhecimento da região fomos ganhando confiança, aprendendo um pouco como que as coisas funcionavam por ali.

Nosso bairro

Nossos vizinhos
O recepcionista falou que ia nos levar para jantar, tinha entendido que seria um restaurante de algum familiar. Fomos passando por barraquinhas iluminadas a vela (não existe iluminação publica em grande parte de Porto Príncipe), quando chegamos num hotel. Era de alto padrão, mas os pratos estavam em torno de 7 USD, então resolvemos ficar. Em outra mesa tinha um grupo de missionários americanos junto com haitianos. Um dos haitianos veio conversar com a gente e contou que conseguiu um emprego em Michigan- EUA, onde mora como asilado desde o terremoto. Disse que tem uma vida boa, mas que morre de saudades do seu país, dos familiares e amigos, do seu canto. Foi a primeira de muitas outras demonstrações de amor ao Haiti que escutamos.
Caminhamos ladeira abaixo até a rua principal do bairro. A única com asfalto, ou pelo menos com um pouco de asfalto. Fomos num mercado e na hora de pagar a conta levamos um susto. Tínhamos estranhado que os preços indicados estavam muito baratos. Um dólar americano é o equivalente a quase 45 Gouldes, moeda nacional. Mas eles indicam e falam preços em “Dóla” ou “Hatien” (pronunciam “reichiens”), moeda imaginaria que vale 5 Gouldes.
Café da manhã tomado, fomos negociar com os Tap-Tap, sistema de transporte por aqui. São minivans, caminhonetes ou até micro-ônibus todos enfeitados, muitos deles com musica alta. Para quem acompanha o Blog ou leu meu livro vai se lembrar dos Matatus do Quênia. São a versão haitiana dos Matatus!! Muitas pinturas de santos, que são entidades do voodoo, além de jogadores de futebol! Se no Quênia tinha muitos times ingleses em evidencia, no Haiti os brasileiros que fazem sucesso, ao lado do Messi, é claro. O mais legal foi ver uma pintura antiga do Neymar com a camisa do Barcelona, bem na semana que anunciaram a sua transferência para o time catalão.
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Neymar
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Tap Tap!!
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Bandeiras do Brasil e Santos/entidades voodoo
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Messi
Num primeiro contato nos sentimos viajando invisíveis, ninguém nos notava e esboçava uma reação com nossa presença, boa ou ruim. Imagino que seja pelo grande numero de estrangeiros vivendo no país (sentimos isto no norte do Iraque também). Mas ao cumprimentarmos alguém, ou simplesmente trocar um sorriso tudo mudava. Já se abriam todos e rolava uma boa inteiração.
Passamos por ruas imundas e ao nos aproximarmos do centro da cidade o caos só aumentava. A desordem do transito era grande e mesmo gostando dos Tap-Tap confesso que foi bom caminhar pelas ruas. O centro da cidade é deprimente. Esgotos a céu aberto, lixo por todos os lados. Na calçada vendiam de tudo, parecia um grande brechó. Alguns vendedores mais cuidadosos colocavam as roupas em cabides e plásticos para não se sujarem com a poeira que levantava. Uma região chamou atenção, onde vendiam carvão, que é a forma utilizada por eles para cozinhar, já que existe falta de gás.

Carvão

Lixo e ruínas
A arte não está só nos tap-tap, vimos diversos pintores, artistas de rua, além da musica fazer parte do dia a dia. Percebemos que o lugar ainda esta em ruínas, mas a vida continua. Dois anos e meio se passaram desde o terremoto e os escombros ainda fazem parte da paisagem urbana. O palácio do governo não esta mais lá, assim como a catedral. Ao lado das ruins da catedral postes de iluminação solar contrastavam com famílias que armaram barracas e vivem por ali.
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Catedral
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Famílias acampadas ao lado da antiga catedral
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Região da Catedral
Nas ruas, vendedores de caranguejos numa esquina, um senhor com sua maquina de escrever na outra, esperando que alguém o contratasse para escrever uma carta. As ruas, ou quadras, pareciam ser separadas por setores, e tinham restos de equipamento eletrônico (sucata na maior parte do mundo), produtos chineses, roupas, qualquer coisa que possa ser vendida. Serviços também, passamos por uma região onde era um salão de beleza a céu aberto. Mulheres faziam as unhas e montavam o ultimo penteado. Alias, capricham no estilo dos cabelos por aqui. Tranças do tudo que é tipo, dreads, raspado, chuquinha, todos estilosos e chamando atenção. O sol estava forte quando chegamos na região das comidas. Caixas e camelôs eram afastados quando um carro tentava atravessar a “feira”. Hortaliças, peixes, comidas empacotadas e outras provenientes de doação estavam disponíveis. Poucos metros dali, atrás dos vendedores, um esgoto corria sem que espantassem os clientes. Os prédios destruídos pelo terremoto, também não causam estranheza para quem esta ralando no dia a dia de Porto Príncipe. Dizem que no Haiti ninguém tem emprego, mas todo mundo trabalha. È uma grande verdade. Povo trabalhador, muito guerreiro, sem futuro, mas de cabeça erguida. Já viajei por regiões muito pobres, já vi situações de vida muito duras, mas estava difícil de controlar as emoções ali. A cabeça fica a mil por uns dias e se dormir é fácil pelo cansaço, o descanso não é simples, pois a mente não para, nem o coração.

feira perto do mercado

vendedores no centro

Antigo Palácio
O grande mercado coberto é uma atração. Além de toda a vida do dia a dia, fomos direto na sessão do Voodoo. Quem relaciona a pratica a magia negra esta enganado. É claro que tem a parte “maligna”, é possível até comprar bonequinhos que estão em saquinhos para serem vendidos. Mas é uma “religião” que tem laços com o Candomblé e Umbanda (sou meio leigo), além da Santeria cubana. Os escravos trouxeram suas crenças do Benin e Togo, ao escutarem sobre o catolicismo e praticas indígenas, associaram com suas crenças e mesclaram tudo. Muitas entidades tem relação com santos católicos, outras são entidades negras e indígenas. Encontramos um “pai de santo” que nos mostrava orgulhoso suas fotos. Bandeiras utilizadas nos rituais, bonecos, velas e mais um monte de coisas estavam a venda. Dizem que no Haiti 2/3 da população é católica, 1/3 protestante e 100% pratica o voodoo. Além da questão religiosa, tem muito a ver com a identidade do povo, estando até diretamente relacionada com a independência do país, alias, o primeiro país independente das Américas.

Voodoo!

mercado
Na parte de comidas tinha tartarugas e pombos. Lembrei que já tinha experimentado os dois, em países diferentes. Mas fiquei meio assim de perguntar porque tantos gatos estavam amarrados com uma corda no pescoço. Preferi imaginar que era para caçar ratos…
Também fomos para a parte rica da cidade, Pettionville. Imaginava um bairro mais organizado, mais ainda era bem sujo. De qualquer maneira as SUVs nas ruas, até dois Porsches Cayenne mostravam que tinha algo diferente por ali. Uma ou outra loja cara, mas a parte rica mesmo fica nas montanhas, nas mansões atrás dos grandes muros.
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Arquitetura
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Casas
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casas pouco preservadas
Assim como escutei de muitos africanos, os haitianos odeiam os organizações internacionais. Difícil para alguém que se mata de trabalhar ver um jovem estrangeiro enriquecendo com altos salários, bônus, super casas e carrões. Mal eles sabem que o dinheiro por trás disto tudo ainda é bem maior, uma verdadeira indústria. Um belga que trabalhou como conselheiro da presidência do Haiti disse que apenas 2% das doações internacionais é aplicado no país. Uma “maquina” cara, não? Não precisa ser um expert para ver que tem algo de muito errado. O pior é que estes 2% são muito importantes para o país.
Quem acompanhou minhas viagens já leu o que meus amigos etíopes achavam disto tudo, e como a falta de conhecimento fez com que muitas vezes uma “ajuda” destruísse uma indústria local, por exemplo. Poderia citar alguns casos que escutamos, mas aqui o foco é outro. Quem se interessar pelo assunto, leia Dead Aid, um livro que aborda este tema. Para ser justo, gostaria de comentar que a organização brasileira Viva Rio foi elogiada, falaram que tem uma aproximação e um foco diferente. Ficamos muito felizes em escutar isto!
Algumas pessoas podem estranhar eu passar férias no Haiti. Acredito que a beleza da vida não está somente nos jardins floridos, mas também naquela planta que nasce nas adversidades do deserto ou no meio do asfalto rachado. A luta e orgulho dos haitianos é algo inspirador, e a capacidade de adaptação do ser humano inacreditável.
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Porto Principe
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Indo para a escola
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Existe futuro?
Mal eu sabia que, além do seu povo e cultura, o Haiti oferece grandes atrações para quem quer fazer turismo no país. Fomos até uma região de onde saem ônibus e vans lotados para o norte e seguimos viagem…
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