Na terra dos Vainaques

A história e costumes dos Chechenos e Inguches são muito interessantes. Eles são do povo Vainaque, descendente nos Naks que vieram da região da Mesopotâmia para o Cáucaso, mais de 10 mil anos atras. Viveram isolados nas montanhas por milhares de anos e foram se desenvolvendo como sociedade. Claro que por estarem no caminho entre o ocidente e oriente, foram influenciados pelos diversos povos que passavam e conquistaram a região, mas pertenceram com características muito únicas.

A estrutura social é bem forte. Consiste no individuo, família, grupo, clan, ramificações, alianças e a “nação”  propriamente dita (nação não tem a ver com país neste caso). Existe uma característica e um código de moral forte e definido nos povos descendentes dos Vainaques. O primeiro valor destes povos é a liberdade, depois vem a igualdade e em terceiro lugar a hospitalidade. Na republica de Inguchétia, um anfitrião é completamente responsável pelo seu hospede perante a sociedade, precisando não só proteger como atender todas as suas necessidades básicas. As estruturas democráticas destas sociedades chamou muito a atenção dos conquistadores russos, mas não os impediu que invadissem a região.

Partimos de Vladikavkaz, que hoje fica na Ossétia do Norte, mas já fez parte da Inguchétia (esta disputa já causou grandes problemas). Um pouco adiante atravessamos Beslan, cidade que teve um grande massacre dez anos atrás. Era o aniversario da data onde mais de 300 pessoas (a maioria crianças) foram mortas por terroristas em uma escola. Fomos parados para mais um controle de passaportes e acabamos desistindo de visitar o memorial. O clima estava tenso demais e não queríamos ser confundidos com jornalistas.

Vamos para onde?

Vamos para onde?

A  Inguchétia é uma das menores e mais pobres subdivisões da Federação Russa. Viajávamos por paisagens rurais e quase não percebemos quando passamos pela maior cidade, Nazran. Nazran foi a capital até o ano 2000, quando construíram o centro administrativo nos seus arredores, aproximadamente no local da histórica Magas, que havia sido destruída em 1239 pelos mongóis. Hoje a pequena Magas é a capital da República da Inguchétia.

Bem vindos à Inguchétia

Bem vindos à Inguchétia

Quando passamos por mais um memorial, não nos aguentamos e paramos. Durante a segunda guerra mundial, os inguches e chechenos foram acusados de colaborar com os nazistas. Stalin deportou quase metade da população para a Ásia Central e Sibéria, o que ocasionou a morte de muitos deles . Um memorial muito bem montado, com as devidas homenagens aos heróis e aos mortos, com a chama eterna bem na frente de uma torre tradicional Inguch. Tanques, estatuas, fotografias e lista de nomes completavam o senário.

Torres Inguches

Torres Inguches

Heróis de gerra

Heróis de gerra

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Praça no memorial

Praça no memorial

Seguimos nossa viagem pela pequena estrada cheia de agricultores vendendo seus produtos no acostamento. Nosso motorista ia em alta velocidade, ou tinha pressa ou gostava de correr. Tudo ia bem, até que apareceu uma mureta dividindo as pistas, marcando o inicio de uma auto estrada. Poderia ser bom, caso nosso motorista não tivesse entrado a 130 por hora na contramão. Desespero geral!! Alguns caminhões vinham no sentido oposto, estavam longe, mas também  em alta velocidade. Nosso ” Rubinho” freou, foi controlando o carro, deu um cavalo de pau, seguiu acelerando e fez nova curva forte para contornar a mureta (na frente de outros carros) e pegar a estrada no sentido correto. Eu na frente tentava falar para ele ir tranquilo e ele só olhava com uma cara de “deixa comigo”. As pessoas tem medo de atentado terrorista nestas regiões, mas é muito mais fácil morrer de acidente de carro por ali, com certeza!

Agricultores

Agricultores

Começaram a aparecer placas com a figura de Akhmad Kadyrov, líder Checheno que assinou um acordo com a Russia após a internacionalmente chamada “guerra da Chechênia”. Nos aproximávamos de Grozny, capital da Chechênia com as lembranças de imagens de uma cidade devastada por duas grandes guerras de independência. O conflito só terminou em 2009 e esperávamos ainda encontrar algumas ruínas, já que para muitos é uma das cidade mais bombardeada da história. Foi um choque. Os subúrbios são um pouco pobre, mas longe de terem entulhos e resquícios da guerra. Já o centro da cidade está completamente reconstruído. Avenidas largas, praças com jardins, shopping moderno e prédios novos. Difícil de imaginar que tão pouco tempo atras estava tudo destruído. Para ver que quando se tem vontade politica e dinheiro, as coisas andam. Falam em um investimento de mais de 5 bilhões de dólares na região. Pelo jeito a Russia não quer perder a Chechênia de forma alguma. Conversando com amigos russos, eles diziam que Grozny era uma das cidades mais seguras de toda a Russia. Senário completamente diferente dos períodos de guerra quando centenas de milhares de pessoas morreram, ou da curta independência, quando 176 pessoas foram sequestradas somente em 1998.  Apesar da informação de segurança, não deixava de ter uma certa tensão no ar, talvez até pelo nosso inconsciente.

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Herói para uns, traidor para outros.

Igreja Ortodoxa

Igreja Ortodoxa

Shopping

Shopping e mulheres chechenas

Avenidas

Difícil de imaginar que a poucos anos a cidade estava toda destruída.

Uma igreja ortodoxa era protegida por soldados, estes também espalhados por regiões estratégicas da cidade. Saímos para conhecer a cidade e nosso motorista parecia bem animado, era a primeira vez dele por ali também. Tentávamos tirar fotos discretamente para não acabarmos na delegacia como na Ossétia do Norte, mas nosso problema ali foi outro. Eu e o motorista eramos os únicos de calça comprida. Devido o calor o Leo, khouri e Marcelo estavam de bermuda. Eu lembro muito bem quando fui atravessar o continente africano que me recomendaram usar calça. Na época eu não entendi direito, pois pareceria um estrangeiro de qualquer maneira. Mais para frente compreendi que a bermuda chama muito a atenção, e pode ser considerada ofensiva em algumas sociedades. No Paquistão em pleno Ramadã, para meu desespero, meu cunhado insistia em usar bermuda. Nunca tivemos nenhum problema, mas não foi o caso na Chechênia. Mal iniciamos nossa caminhada e um grupo de jovens gritou alguma coisa de forma agressiva de dentro de um carro. Como não entendemos nada, ignoramos. Mais adiante, atravessando a ponte, já próximos da mesquita, um cara parou o Marcelo e apontava para a perna dele. Gesticulava de forma não muito amigável e mostrava a sua calça. O recado estava dado. Circulamos entre os chafarizes e pela bonita praça ao redor da mesquita. Quando nos aproximamos, guardas falaram que não era permitido estar de bermuda ali. Eu e o nosso motorista entramos, não sei quem estava mais empolgado. O resto do pessoal teve que se afastar um pouco. Rodamos mais a cidade, levamos outros xingões, mas agora já sabíamos qual era o motivo. Interessante que é uma cidade bem moderna, e as pessoas que se incomodavam também aparentavam uma vida moderna, normalmente jovens. Julgamos ser muito mais uma espécie de fascismo do que uma questão religiosa ou tradicional. Talvez até uma xenofobia, algo impossível em uma região tradicional inguche ou chechena.

Teatro

Teatro Nacional

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prédios novos vistos da mesquita

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Prédios modernos

Mesquita cm a bandeira Chechena

Mesquita com a bandeira Chechena

Grozny

Grozny

Soube que existem gangues que atiram com paintball em mulheres que não cobrem a cabeça, algo que teoricamente não é obrigatório. Mas não imagine mulheres com chador ou roupas pretas. Até mesmo os lenços ou hijabs são bem coloridos. Achei muito interessante como o islamismo se desenvolveu na região, absorvendo elementos da cultura Vainaque. No interior, conservam elementos das religiões pré-islâmicas, e chamam até hoje Allah de “Dela”, nome do principal deus da religião ancestral deles.

Arredores de Grozny

Mesquita nos arredores de Grozny

O grupo separatista da Chechênia perdeu a força, principalmente devido a todos os investimentos e repressão brutal que a Russia exerce na região. A própria integração da Chechênia à Russia foi via referendo, mostrando que existe um certo apoio popular. Apesar de não existir muitos crimes urbanos, não deixa de ser uma região um pouco volátil. Atualmente os conflitos migraram mais para os vizinhos Daguestão e Inguchétia, mas confesso que não me surpreendi quando um mês depois que voltei para casa, li sobre um novo atentado a bomba no centro de Grozny, onde 5 pessoas morreram.

Entendi melhor o que nosso motorista tentava nos explicar na volta para Vladikavkaz. Ele gesticulava e falava em osseta, mostrando que Grozny era mais ou menos. Interessante ver a reconstrução, modernidade, mas segundo ele, o bom mesmo era “Goris, shashlik…”. O pessoal se divertia quando eu traduzia que ele queria nos levar para as montanhas para fazer um churrasco, que isto sim seria divertido! Pelo jeito nosso motorista tinha o mesmo gosto que eu. Apesar das cidades serem interessantes, o interior é bem mais legal! Muito bacana como é possível conversar tanto tempo e se dar bem com uma pessoa que não fala uma palavra na mesma língua que você. Eu tinha anotado umas frases em russo, mas fica a dica, as palavras em osseta, inguch ou checheno que vão arrancar sorrisos no norte do cáucaso!

Quase me matou, mas é meu amigo! ;)

Quase me matou, mas é meu amigo! 😉

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8 comentários em “Na terra dos Vainaques

  1. Que lugar incrível! Parece que os conflitos ainda tem consequências no jeito que o povo lida com estrangeiros, mas já é um progresso poder visitar e conhecer gente bacana. 🙂

    • Gi, cada parte com sua característica, mas a Russia toda é meio maluca. Um ultranacionalismo e modo de pensar/rivalidade muito grande com o resto do ocidente. Pelas conversas que tive e pelas noticias que vemos, acho que vai ser um momento histórico na região. Espero que não termine em uma grande guerra, mas a Russia está mais forte do que nunca.

    • Acho que eu não tinha te contado Pati, desespero total!! Tenho que te contar mais detalhes depois, foi assustador! Isto sem falar nas ultrapassagens. Apesar de ter nos colocado em risco, o motorista era gente fina! 😉

  2. Pingback: Que país é este?! – Índice para os países com reconhecimento limitado | Saíporaí

    • Obrigado Bruno. Faz tempo que não publico pq só escrevo das viagens, não fico enrolando com lista top 10 😉
      Mês que vem estou na estrada novamente, fique de olho!
      Abraço

  3. Eu já visitei a Rússia, inclusive fui até a região de conflito na Ucrânia; Donbass. Mas minha paixão seria visitar o Cáucaso, tanto o norte quanto o sul. Creio que os chechenos sejam um povo amigos dos russos, mesmo que uma minoria não o seja, entretanto isso não impede esse grande laço de amizade entre essas duas nações. Sou um fã dos chechenos, ainda mais depois que conheci alguns no Donbass, muito guerreiros e corajosos. Tenho certeza que minha próxima viagem à Rússia terei o privilégio de conhecer essa República.

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