Dargavs, a cidade dos mortos!

Se Dargavs, a cidade dos mortos, ficasse em algum outro país europeu, seu dia a dia seria diferente. Existiriam filas de turistas, lojinhas vendendo cartões postais, imãs de geladeira e camisetas. Barracas de comida nas proximidades disputariam os turistas a tapa. Hotéis com vista para a “cidade”, tours diários direto de Vladikavkaz, passes especiais para visitas noturnas em dias de lua cheia. Com certeza estaria listado na lista do patrimônio da Unesco e figuraria entre as principais atrações de qualquer país. Mas (para nossa sorte) não está! Ela esta perdida no meio do cáucasos, isolada, parada no tempo, cercada por montanhas de pelo menos 4 mil metros…

Saindo de Vladikavkaz, fomos sentido sudoeste, como quem iria para a Ossétia do Sul. Não tinha como não lembrar com frustração que estava tão perto deste “não-país”, mas que não poderia visitar por ter perdido a data de entrada. O Marcelo me incomodava dizendo que esta seria uma grande “mancha no meu currículo”. Depois de diversos contatos e burocracia com as autoridades da Ossétia do Sul, agora os planos eram outros.

Arredores de Vladikavkaz

Igreja ortodoxa nos arredores de Vladikavkaz

Dezenas de guindastes se destacavam nas obras de novos conjuntos habitacionais sendo construídos nos arredores de Vladikavkaz. Igrejas ortodoxas e memoriais de guerra montavam a paisagem que se tornava rural, com as imponentes montanhas do cáucasos atrás. Na parada para abastecer, carros da Ossétia do Sul nos mostravam o quanto estávamos perto deste “País que não existe”. Já conformado que não iriamos para lá, agora tentávamos achara o caminho para Dargavs.

RSO- República da Ossétia do Sul

RSO- República da Ossétia do Sul

Venda de mel

Produção e venda de mel na beira da estrada

Uma estrada simples, pequena mas relativamente bem conservada ia acompanhando uma corredeira que trazia água de desgelo. Nosso motorista, chamado “Guia” estava animado. Nunca tinha ido para “temida” Dargavs – a cidade dos mortos. Diz a lenda local que quem visita a cidade não volta vivo. Não sei se foi por isto, mas um pouco para frente paramos num local para fazer oferendas. Ele nos deu moedas e nos chamou para jugarmos numa espécie de poço. Nem pensamos duas vezes, poderíamos estar garantindo as nossas vidas, era melhor seguir o script.

Não custa nada deixar umas moedinhas

Não custa nada deixar umas moedinhas

Fomos viajando entre as belas montanhas, quando passamos por uma cidadezinha, Koban (?), relativamente bem estruturada. Fortes antigos e diversas torres tradicionais ao longo da colina. O “Guia” tentava nos explicar que era um lugar turístico, onde “muitos estrangeiros” vinham. Ok, quem sabe (como osseta) ele estava se referindo aos Russos como estrangeiros. Ele escutava animado musicas internacionais, e enquanto tocou Sting, nos questionou se não era musica brasileira. Não nos parecia muito bem informado…

Ruinas do Forte

Ruínas do Forte

Torres tradicionais

Torres tradicionais

Mudamos os trajeto, agora não seguíamos entre as montanhas e sim montanha acima. Avistamos pela primeira vez o Monte Kazbegi, o mesmo que tínhamos visto dias antes do lado Georgia. Entre uma e outra encruzilhada ficamos na duvida para onde seguir. Fomos atendidos por um simpático casal de ossetas. Mesmo Dargavs sendo tão incrível, não tinham a menor ideia de onde queríamos ir. Tivemos que mostrar uma foto para nos apontarem a direção. Antes disso a senhora fez questão de me levar até uma pequena casa de madeira próxima do rio. O Marcelo, Leo e Khouri não entendiam porque eu tinha entrado no “banheiro” com ela e demorado tanto. Na verdade era o local onde ela produzia pão para toda a vila, acho que ficaram aliviados ao saber disto. O marido, provavelmente depois de ter tomado umas doses de vodka, nos abraçava e sorria sem parar.

Monte Kazbegi visto do lado osseta-russo da fronteira

Monte Kazbegi visto do lado osseta/russo da fronteira

Esqueça

Esqueça politica, conflitos e fronteiras, o mundo é feito de pessoas!

Indicações turisticas

Sinais do turismo na região

Não estávamos longe de Dargavs, e quando chegamos ao próximo vilarejo, decidimos ir caminhando, para observarmos melhor o ambiente todo. O rio Gizeldon estava tímido, com pouca água, mas todo o vale e as montanhas dão um clima especial para o lugar.

Rio

Rio Gizeldon

Primeira vista de Dargavs

Primeira vista de Dargavs

Dargavs, a cidade dos mortos, na verdade é um cemitério. São cerca de 100 criptas, construídas entre os seculos 12 e 16. Todas as necrópoles tem uma arquitetura bem singular e uma torre solitária se destaca um pouco mais a direita.

Dargavs

Dargavs

Torre

Torre solitária

Dargavs

Criptas com as montanhas ao fundo

Vista de cima da torre

Vista de cima da torre

O silencio tomava conta do lugar. Teias de aranha comprovavam o abandono, mas a beleza de todo o conjunto nos impedia de achar algo de assustador. Até mesmo os caixões abertos e os esqueletos pareciam estar em harmonia. Moedas nas entradas de algumas tumbas são a unica marca de que existe visitação por ali.

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Uma das lendas é de que uma praga assolou a Ossétia centenas de anos atras. Dargavs teria sido construída para servir de abrigo para os doentes, que teriam vivido lá enquanto aguardavam a sua morte. Dai viria a história de que quem vai para Dargavs não volta com vida. Arqueologistas comprovam que as construções são bem mais antigas que a praga de poucos seculos atrás, que dizimou grande parte da população. De qualquer maneira não é difícil de imaginar que a praga tenha dado origem a esta superstição de não sair vivo de lá.

Dargavs

Dargavs

Teias e aranhas por todos os lados

Teias e aranhas por todos os lados

Cemitério tem que ter flor!

Cemitério tem que ter flor!

Dargavs

Dargavs

Dargavs

Dargavs

Depois de explorar toda a região por horas, procurar curiosidades, subir na torre e apreciar a vista fantástica do local, decidimos voltar. Durante o longo trajeto não fazíamos piada sobre não voltar de lá com vida. Não queríamos dar chance para o azar. Com tantas curvas, precipícios e motoristas com hábitos suicidas, demoramos para relaxar.

Visual na beira da estrada

Visual na beira da estrada

Poucas horas depois, contornamos Vladikavkaz e  nos aproximamos da fronteira da Rússia com a Geórgia. Uma fila de caminhões apareceu, nos mostramos que não teríamos tarefa fácil. Se na ida para a Ossétia o “Zico” deu um show de habilidade/contatos/proatividade, agora era a vez do “Guia” mostrar seus talentos. Furava fila, desafiava “caras de poucos amigos” e só parava quando aparecia um carro de polícia. Também tinha uns contatos por ali, o que claro que facilitou muito. Depois de varias situações, chegamos a imigração russa. Furando novamente a fila descaradamente, questionei porque ninguém reclamava. Ele só fez sinais mostrando telefones, armas e outras coisas que não entendi direito. A mafia estava conosco novamente, não seria desta vez que nos impediriam. A oficial da imigração se frustrou quando não entendemos nenhuma das perguntas que fez. Perdemos uns minutos mas logo fomos liberados.

A equipe! Agora parados em um congestionamento na "terra de ninguém", entre Ossétia (Rússia) e Geórgia

A equipe! Agora parados em um congestionamento na “terra de ninguém”, entre Ossétia (Rússia) e Geórgia

Mas não chegaríamos com tanta facilidade à Geórgia. ainda tinha toda a “Terra de ninguém”entre as duas fronteiras. Nosso motorista fez o possível e impossível, ultrapassou filas dentro de tuneis e tudo, mas uma hora tudo parou. Ficamos um bom tempo parados em congestionamentos, só observando a “mafia dos fura fila”. Nos aproximando da República da Geórgia a situação foi se normalizando. Na imigração nos olharam com certa suspeita, fizeram meia duzia de perguntas e nos liberaram. O transito fluiu e não demorou muito para chegarmos próximo de Kazbegi. A noite se aproximava e não imaginávamos ter que enfrentar um novo congestionamento, quando de repente cruzamos com milhares de ovelhas!! Uma situação no minimo inesperada, mas para falar a verdade nada mais nos surpreendia…

Congestionamento na chegada na Geórgia

Congestionamento na chegada na Geórgia

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Na terra dos Vainaques

A história e costumes dos Chechenos e Inguches são muito interessantes. Eles são do povo Vainaque, descendente nos Naks que vieram da região da Mesopotâmia para o Cáucaso, mais de 10 mil anos atras. Viveram isolados nas montanhas por milhares de anos e foram se desenvolvendo como sociedade. Claro que por estarem no caminho entre o ocidente e oriente, foram influenciados pelos diversos povos que passavam e conquistaram a região, mas pertenceram com características muito únicas.

A estrutura social é bem forte. Consiste no individuo, família, grupo, clan, ramificações, alianças e a “nação”  propriamente dita (nação não tem a ver com país neste caso). Existe uma característica e um código de moral forte e definido nos povos descendentes dos Vainaques. O primeiro valor destes povos é a liberdade, depois vem a igualdade e em terceiro lugar a hospitalidade. Na republica de Inguchétia, um anfitrião é completamente responsável pelo seu hospede perante a sociedade, precisando não só proteger como atender todas as suas necessidades básicas. As estruturas democráticas destas sociedades chamou muito a atenção dos conquistadores russos, mas não os impediu que invadissem a região.

Partimos de Vladikavkaz, que hoje fica na Ossétia do Norte, mas já fez parte da Inguchétia (esta disputa já causou grandes problemas). Um pouco adiante atravessamos Beslan, cidade que teve um grande massacre dez anos atrás. Era o aniversario da data onde mais de 300 pessoas (a maioria crianças) foram mortas por terroristas em uma escola. Fomos parados para mais um controle de passaportes e acabamos desistindo de visitar o memorial. O clima estava tenso demais e não queríamos ser confundidos com jornalistas.

Vamos para onde?

Vamos para onde?

A  Inguchétia é uma das menores e mais pobres subdivisões da Federação Russa. Viajávamos por paisagens rurais e quase não percebemos quando passamos pela maior cidade, Nazran. Nazran foi a capital até o ano 2000, quando construíram o centro administrativo nos seus arredores, aproximadamente no local da histórica Magas, que havia sido destruída em 1239 pelos mongóis. Hoje a pequena Magas é a capital da República da Inguchétia.

Bem vindos à Inguchétia

Bem vindos à Inguchétia

Quando passamos por mais um memorial, não nos aguentamos e paramos. Durante a segunda guerra mundial, os inguches e chechenos foram acusados de colaborar com os nazistas. Stalin deportou quase metade da população para a Ásia Central e Sibéria, o que ocasionou a morte de muitos deles . Um memorial muito bem montado, com as devidas homenagens aos heróis e aos mortos, com a chama eterna bem na frente de uma torre tradicional Inguch. Tanques, estatuas, fotografias e lista de nomes completavam o senário.

Torres Inguches

Torres Inguches

Heróis de gerra

Heróis de gerra

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Praça no memorial

Praça no memorial

Seguimos nossa viagem pela pequena estrada cheia de agricultores vendendo seus produtos no acostamento. Nosso motorista ia em alta velocidade, ou tinha pressa ou gostava de correr. Tudo ia bem, até que apareceu uma mureta dividindo as pistas, marcando o inicio de uma auto estrada. Poderia ser bom, caso nosso motorista não tivesse entrado a 130 por hora na contramão. Desespero geral!! Alguns caminhões vinham no sentido oposto, estavam longe, mas também  em alta velocidade. Nosso ” Rubinho” freou, foi controlando o carro, deu um cavalo de pau, seguiu acelerando e fez nova curva forte para contornar a mureta (na frente de outros carros) e pegar a estrada no sentido correto. Eu na frente tentava falar para ele ir tranquilo e ele só olhava com uma cara de “deixa comigo”. As pessoas tem medo de atentado terrorista nestas regiões, mas é muito mais fácil morrer de acidente de carro por ali, com certeza!

Agricultores

Agricultores

Começaram a aparecer placas com a figura de Akhmad Kadyrov, líder Checheno que assinou um acordo com a Russia após a internacionalmente chamada “guerra da Chechênia”. Nos aproximávamos de Grozny, capital da Chechênia com as lembranças de imagens de uma cidade devastada por duas grandes guerras de independência. O conflito só terminou em 2009 e esperávamos ainda encontrar algumas ruínas, já que para muitos é uma das cidade mais bombardeada da história. Foi um choque. Os subúrbios são um pouco pobre, mas longe de terem entulhos e resquícios da guerra. Já o centro da cidade está completamente reconstruído. Avenidas largas, praças com jardins, shopping moderno e prédios novos. Difícil de imaginar que tão pouco tempo atras estava tudo destruído. Para ver que quando se tem vontade politica e dinheiro, as coisas andam. Falam em um investimento de mais de 5 bilhões de dólares na região. Pelo jeito a Russia não quer perder a Chechênia de forma alguma. Conversando com amigos russos, eles diziam que Grozny era uma das cidades mais seguras de toda a Russia. Senário completamente diferente dos períodos de guerra quando centenas de milhares de pessoas morreram, ou da curta independência, quando 176 pessoas foram sequestradas somente em 1998.  Apesar da informação de segurança, não deixava de ter uma certa tensão no ar, talvez até pelo nosso inconsciente.

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Herói para uns, traidor para outros.

Igreja Ortodoxa

Igreja Ortodoxa

Shopping

Shopping e mulheres chechenas

Avenidas

Difícil de imaginar que a poucos anos a cidade estava toda destruída.

Uma igreja ortodoxa era protegida por soldados, estes também espalhados por regiões estratégicas da cidade. Saímos para conhecer a cidade e nosso motorista parecia bem animado, era a primeira vez dele por ali também. Tentávamos tirar fotos discretamente para não acabarmos na delegacia como na Ossétia do Norte, mas nosso problema ali foi outro. Eu e o motorista eramos os únicos de calça comprida. Devido o calor o Leo, khouri e Marcelo estavam de bermuda. Eu lembro muito bem quando fui atravessar o continente africano que me recomendaram usar calça. Na época eu não entendi direito, pois pareceria um estrangeiro de qualquer maneira. Mais para frente compreendi que a bermuda chama muito a atenção, e pode ser considerada ofensiva em algumas sociedades. No Paquistão em pleno Ramadã, para meu desespero, meu cunhado insistia em usar bermuda. Nunca tivemos nenhum problema, mas não foi o caso na Chechênia. Mal iniciamos nossa caminhada e um grupo de jovens gritou alguma coisa de forma agressiva de dentro de um carro. Como não entendemos nada, ignoramos. Mais adiante, atravessando a ponte, já próximos da mesquita, um cara parou o Marcelo e apontava para a perna dele. Gesticulava de forma não muito amigável e mostrava a sua calça. O recado estava dado. Circulamos entre os chafarizes e pela bonita praça ao redor da mesquita. Quando nos aproximamos, guardas falaram que não era permitido estar de bermuda ali. Eu e o nosso motorista entramos, não sei quem estava mais empolgado. O resto do pessoal teve que se afastar um pouco. Rodamos mais a cidade, levamos outros xingões, mas agora já sabíamos qual era o motivo. Interessante que é uma cidade bem moderna, e as pessoas que se incomodavam também aparentavam uma vida moderna, normalmente jovens. Julgamos ser muito mais uma espécie de fascismo do que uma questão religiosa ou tradicional. Talvez até uma xenofobia, algo impossível em uma região tradicional inguche ou chechena.

Teatro

Teatro Nacional

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prédios novos vistos da mesquita

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Prédios modernos

Mesquita cm a bandeira Chechena

Mesquita com a bandeira Chechena

Grozny

Grozny

Soube que existem gangues que atiram com paintball em mulheres que não cobrem a cabeça, algo que teoricamente não é obrigatório. Mas não imagine mulheres com chador ou roupas pretas. Até mesmo os lenços ou hijabs são bem coloridos. Achei muito interessante como o islamismo se desenvolveu na região, absorvendo elementos da cultura Vainaque. No interior, conservam elementos das religiões pré-islâmicas, e chamam até hoje Allah de “Dela”, nome do principal deus da religião ancestral deles.

Arredores de Grozny

Mesquita nos arredores de Grozny

O grupo separatista da Chechênia perdeu a força, principalmente devido a todos os investimentos e repressão brutal que a Russia exerce na região. A própria integração da Chechênia à Russia foi via referendo, mostrando que existe um certo apoio popular. Apesar de não existir muitos crimes urbanos, não deixa de ser uma região um pouco volátil. Atualmente os conflitos migraram mais para os vizinhos Daguestão e Inguchétia, mas confesso que não me surpreendi quando um mês depois que voltei para casa, li sobre um novo atentado a bomba no centro de Grozny, onde 5 pessoas morreram.

Entendi melhor o que nosso motorista tentava nos explicar na volta para Vladikavkaz. Ele gesticulava e falava em osseta, mostrando que Grozny era mais ou menos. Interessante ver a reconstrução, modernidade, mas segundo ele, o bom mesmo era “Goris, shashlik…”. O pessoal se divertia quando eu traduzia que ele queria nos levar para as montanhas para fazer um churrasco, que isto sim seria divertido! Pelo jeito nosso motorista tinha o mesmo gosto que eu. Apesar das cidades serem interessantes, o interior é bem mais legal! Muito bacana como é possível conversar tanto tempo e se dar bem com uma pessoa que não fala uma palavra na mesma língua que você. Eu tinha anotado umas frases em russo, mas fica a dica, as palavras em osseta, inguch ou checheno que vão arrancar sorrisos no norte do cáucaso!

Quase me matou, mas é meu amigo! ;)

Quase me matou, mas é meu amigo! 😉

Ossétia do Norte – Alânia: Fora da rota turística

A região do norte do Cáucaso possui uma das maiores concentrações de etnias do mundo. De certa maneira isto explica, mas não justifica, a grande quantidade de conflitos na região. São diversos povos, buscando preservar sua cultura, reconquistar seu espaço, buscar autonomia ou proclamar independência. As Alanos (ou norte ossetas), são um povo persa, descendentes dos Citas e dos Sármatas, originários de uma região ao sul do Irã (hoje Sistão-Baluchistão, próximo da fronteira com o Paquistão), que chegaram no norte do cáucaso entre os  seculos 4 e 7. Tiveram influencia dos Bizantinos e muitos se converteram para o cristianismo. Sofreram muito com os ataques dos mongóis e tatars no seculo 13 e no seculo 17 se converteram ao islamismo, sob influencia dos seus vizinhos do Cáucasos. No final do seculo 18, a região da Ossetia do Norte-Alânia passou a fazer parte do império russo. Não muito tempo depois, em 1806, a região onde hoje é a Ossétia do Sul também foi anexada, junto com a Geórgia. Estes poucos anos de cisão geram conflitos até hoje. A República da Ossétia do Norte – Alânia faz parte da Federação Russa, enquanto que a Ossétia do Sul fez parte da Geórgia até poucos anos atrás, quando proclamou (e com ajuda dos russos, conseguiu)  independência. A Ossétia do Sul é mais um dos “Países Que não Existem”, país de facto independente mas com reconhecimento limitado. Devido a queda da barreira, e perda da data acordada para a entrada, toda a programação inicial para visitar a Ossétia do Sul foi por água abaixo. Restava me contentar com porção norte da Ossétia. A situação politica pode ser bem diferente, porem o povo, costumes e até a bandeira são as mesmas!

Havia passado uns dias viajando sozinho pela região de Svaneti, no norte da Geórgia. Quando soube que a fronteira havia sido reaberta, subi toda a Military Highway até bem próximo da fronteira Geórgia-Russia. Em Kazbegi, ultimo vilarejo da Geórgia, reencontrei o Marcelo e conheci dois grandes amigos e parceiros de viagem dele, o Leo e o Khouri. Kazbegi é uma região belíssima, cheia de montanhas nevadas e com ótimas oportunidades de trilhas. Devido ao fácil acesso por estradas, é um dos principais destinos turísticos de montanha da Geórgia. Mas eu vinha de montanhas ainda mais incríveis, então meu foco era outro. Esta fronteira Geórgia-Russia era fechada para estrangeiros até poucos anos atrás. Hoje não apresenta grandes problemas, ainda mais para brasileiros, que não precisam mais de visto para a Russia. Mas não pense que é tão fácil assim. Não existe transporte público até o outro lado, tampouco até a fronteira. As únicas possibilidades são alugar um táxi ou ir de carona. Também não é possível atravessar a fronteira a pé, tem que estar com um veículo.

Como estávamos em quatro pessoas, não ficou caro para contratar um motorista para nos levar até Vladikavkaz, capital da Ossétia do Norte-Alânia. Eram somente 35 km, mas nosso motorista teria que fazer todo o tramite de fronteira e voltar. Mal sabíamos o grande negocio que estávamos fazendo!

Military Highway

Military Highway sem transito. Nesta foto também sem as montanhas que chegam a bloquear a visão de tão proximas.

Saímos bem cedo, e a estrada é incrível, como que cortando as montanhas. Alguns cânions e tuneis e logo pudemos observar  maquinas trabalhando para liberar as pedras do desmoronamento. As filas de carros iniciaram e descemos para o moderno centro de controle de passaportes georgiano. Muita fila, ou melhor, tumulto. Nada de cavalheirismo, era lei da selva mesmo, onde os mais fortes passavam na frente e atingiam o seu objetivo: sair da Geórgia. A funcionaria da imigração vasculhou meu passaporte buscando o visto russo. Expliquei que não precisávamos e já me preparava para um longo discurso quando ela deu de ombros, como quem dizia, “o problema é teu”!

O nosso motorista já tinha furado a fila dos carros e nos esperava ansioso para partir. Nesta terra de ninguém, já estávamos agradecendo ele, mas nem imaginávamos o que vinha pela frente. Algumas curvas para frente e o transito parou completamente. Na pista para um carro já tinham dois. O nosso motorista, Zico, só deu uma piscadinha e foi avançando na pista contraria. Parava para falar com algumas pessoas que o orientavam. Parecia ter uma ordem dentro daquele caos. Aparentemente esta ordem estava ao nosso favor. Ao furar a fila, poucos contestavam, e quando acontecia, já vinham pessoas defender o Zico. Era como se uma mafia comandasse tudo ali. Qualquer possibilidade, qualquer milimetro possível para embicar na frente de outro carro o nosso motorista ia sem pensar. Em um certo momento  já ocupavam toda a pista no sentido contrario. Os carros da Russia não podiam avançar, e dar ré parecia impossível. Apareceram alguns policiais e antes que a coisa complicasse, depois de muita manobra e negociações, conseguimos um lugar na fila propriamente dita. Com certeza economizamos horas de viagem somente naquele pequeno trecho, pois muitos carros não se moviam. Foi aquele alivio de ter seguido com um carro, ainda mais com o Zico, e não de carona.

Estrada congestionada nas duas pistas

Estrada congestionada nas duas pistas. Os russos estavam tentando vir no outro sentido.

No posto de controle da Russia, pareciam não saber se precisávamos de visto ou não. O Zico falava bem pouco inglês, mas de certa forma acabava nos ajudando. Nós soltávamos uns “Brasil, Russia Friends! No visa! BRICS, BRICS. Piting and Dilma!”haha “Tourists, Excursion, after back to Georgia”… Deu certo!

Imigração russa

Imigração russa e bielorrussa. Interessante que brasileiros precisam de visto para a Bielorrússia, mas não existe controle na fronteira Russia-Bielorrússia.

Para percorrer os 35 quilômetros entre Kazbegi e Vladikavkaz demoramos umas três horas e meia. Chegamos na capital da Ossétia do Norte – Alânia passando por memoriais de guerra, tanques antigos e edifícios estilo comunista. Eu confiante dizia que o Zico poderia somente nos deixar próximo a estação de trem que nos viraríamos. Como percebemos a dificuldade e movimento da fronteira, tentamos já deixar agendado a nossa volta. O Zico parou perto de uns carros e chamou um amigo dele. Paramos para conversar e tentar acertar a data de volta e um preço justo. Neste meio tempo saí para olhar o a cidade, sentir o clima da região. Discretamente eu e o Marcelo tiramos umas fotos, mas isto não terminou bem.

Vladikavkaz

Vladikavkaz

Vladikavkaz

Chegada em Vladikavkaz

Vladikavkaz

Ultima foto antes de ir parar na delegacia

Vladikavkaz

Vladikavkaz

Não demorou muito até um policial se identificar e pedir nossos passaportes. Fez uns telefonemas e apareceu mais um carro cheio de policiais. Queriam saber o que estávamos fazendo ali e quais eram nossos planos. Coitado do Zico, que estava louco de vontade de voltar para a Geórgia. Teve que ir conosco até a delegacia. Entramos, passamos em frente das celas e numa pequena mesa entregamos nossos passaportes e respondemos uma ou outra pergunta. O Zico assumiu a situação e conversava com os policiais. Um bêbado tentava interagir conosco e incomodava os policiais. Ficava entrando e saindo da cela onde tirava umas sonecas e cuspia como se tivesse tirando o pulmão pela boca. Os policiais não gostaram muito, mas não deixou de ser uma atração para nós, já que ficamos um bom tempo lá. Tivemos que nos segurar para não rir varias vezes.

Chegamos na Ossétia na semana do aniversário de dez anos do massacre de Beslan, onde terroristas inguches fizeram mais de 1200 pessoas reféns numa escola, e mataram 334, muitas delas crianças. Não sabíamos se suspeitávamos que eramos jornalistas ou algo do tipo. Já estávamos cansados, quando um oficial nos entregou os documentos e fez uma cara de “aproveitem!”. Sabia que na Russia o registro era necessário, e achei que de certa forma havia sido bom, pois isto já estaria feito. Aceitamos quando o Zico se ofereceu para nos levar até o hotel. Eu tinha anotado o nome de um hotel barato (8 usd por pessoa), Общежитие КЭЧ,  e sabia que ficava na esquinas das ruas Karl Marx e Kirov, só isto. Nos surpreendemos quando a antipática senhora que cuidava da recepção negou a nossa estadia lá. “No Tourist!” Tourist problem”, ou algo do tipo, nosso motorista/amigo/interprete traduzia. Também tinha anotado o nome de uns hotéis disponíveis na internet, mas eram caros, somente para uma emergência. Fomos para ferroviária. Em qualquer lugar do mundo existem hotéis baratos perto da ferroviária. O que encontramos não era nem um pouco bom e nem tão barato assim, mas atendia as nossas necessidades. No quarto tinha um papel de parede descascado, um cheiro de mofo e mobilhas da época do Stalin. Por outro lado na recepção havia até wifi. Não pretendíamos gastar tempo no hotel e o Zico estava de partida, então decidimos ficar ali mesmo. Utilizaríamos como base para explorar a região, evitando ter que viajar para outras republicas e ficar procurando hoteis. Descobrimos que nosso “registro” na delegacia não valia para o hotel, e eles tiveram que fazer outro.

Acreditem, era bem pior que a foto

Nosso hotel era estilo apartamento, eu fiquei na sala – um luxo!

Registro

Novo registro, mesmo depois de ter passado horas na delegacia

Antes de voltar para a Georgia o Zico nos deixou num pátio de onde saem as marshrutkas (lotações), algo como uma “rodoviária”. Nos despedimos e agradecemos muito toda a ajuda que recebemos! Fui tentar entender o preço e os horários do microonibus que iria para Grosny, capital da Republica de Chechênia. A Comunicação era precária, mas dava para ter uma ideia do que estava acontecendo. Enquanto isto o Leo e o Khouri foram pegar informações com uma senhora num guichê. Não sei como seria se eu tivesse viajando sozinho, ou só com a Bibi, mas em quatro pessoas parecia que chamávamos muito a atenção. Policiais viram a movimentação e se aproximaram. “Passport” um deles dizia. Pronto, iniciava mais um longo interrogatório (quando eu digo longo, é muito longo mesmo!). Depois de recolherem nossos passaportes, fizeram uns telefonemas. Apareceu um oficial a paisana que falava umas palavras em inglês. Logo apelidamos ele de “KGB”. Pensamos melhor e achamos que ele poderia entender, então alteramos o nome dele para “Robocop”.

Respondíamos uma ou outra pergunta, enquanto o Robocop recebia instruções pelo telefone. Quando questionado se já havia visitado a Russia o Marcelo teve que falar que sim. O Robocop ficou muito intrigado e queria saber onde tinha ido, se tinha amigos russos… Ficava repetindo perguntas para ver se o Marcelo se contradizia. Calmamente o Marcelo explicava que fazia mais de 25 anos que tinha visitado Moscou e São Petersburgo, que pouco lembrava da viagem. Convencido, o Robocop agora queria saber detalhes da nossa viagem. Comentei que pegaríamos um ônibus e atravessaríamos a Republica de Inguchetia, até a Chechênia, onde pretenderíamos visitar Grosny. “Tourist, excurssion”, repetíamos. Eles se convenceram, e depois de repetir tudo o que faríamos, nos liberaram. Eu ainda tentei pegar o telefone no Robocop. Ele ameaçou dar, mas quis saber porque. Eu gesticulava e tentava explicar que se algum outro policial nos parasse, pediria para ligar para ele. Assim não perderíamos tempo e simplificaríamos as coisas. Ele se negou. Teríamos que se virar sozinhos.

Nos reunimos rapidamente e decidimos mudar de planos. Havíamos perdido muito tempo com todos estes interrogatórios. Estávamos chamando muito a atenção, e poderíamos ter mais problemas. Fui negociar com um táxi para nos levar até Grosny. Depois de algumas contra propostas e muitos números riscados num papel amassado, chagamos num acordo. Chamei o pessoal e entramos no carro. Imediatamente o Robocop sai de um carro de onde nos observava de longe. Se aproximou e questionava: “Vocês não iam de ônibus..?” Santa burocracia! Uma pequena mudança nos planos parecia absurda para ele. Novas explicações, anotou até o nome do hotel onde estávamos e nos liberou.

Era somente nosso primeiro dia no Cáucaso russo e já estávamos exaustos. Por outro lado tudo isto indicava que estávamos viajando bem longe da rota turística e muitas surpresas estavam por vir!

Memorial de Guerra

Memorial de Guerra