A região do norte do Cáucaso possui uma das maiores concentrações de etnias do mundo. De certa maneira isto explica, mas não justifica, a grande quantidade de conflitos na região. São diversos povos, buscando preservar sua cultura, reconquistar seu espaço, buscar autonomia ou proclamar independência. As Alanos (ou norte ossetas), são um povo persa, descendentes dos Citas e dos Sármatas, originários de uma região ao sul do Irã (hoje Sistão-Baluchistão, próximo da fronteira com o Paquistão), que chegaram no norte do cáucaso entre os seculos 4 e 7. Tiveram influencia dos Bizantinos e muitos se converteram para o cristianismo. Sofreram muito com os ataques dos mongóis e tatars no seculo 13 e no seculo 17 se converteram ao islamismo, sob influencia dos seus vizinhos do Cáucasos. No final do seculo 18, a região da Ossetia do Norte-Alânia passou a fazer parte do império russo. Não muito tempo depois, em 1806, a região onde hoje é a Ossétia do Sul também foi anexada, junto com a Geórgia. Estes poucos anos de cisão geram conflitos até hoje. A República da Ossétia do Norte – Alânia faz parte da Federação Russa, enquanto que a Ossétia do Sul fez parte da Geórgia até poucos anos atrás, quando proclamou (e com ajuda dos russos, conseguiu) independência. A Ossétia do Sul é mais um dos “Países Que não Existem”, país de facto independente mas com reconhecimento limitado. Devido a queda da barreira, e perda da data acordada para a entrada, toda a programação inicial para visitar a Ossétia do Sul foi por água abaixo. Restava me contentar com porção norte da Ossétia. A situação politica pode ser bem diferente, porem o povo, costumes e até a bandeira são as mesmas!
Havia passado uns dias viajando sozinho pela região de Svaneti, no norte da Geórgia. Quando soube que a fronteira havia sido reaberta, subi toda a Military Highway até bem próximo da fronteira Geórgia-Russia. Em Kazbegi, ultimo vilarejo da Geórgia, reencontrei o Marcelo e conheci dois grandes amigos e parceiros de viagem dele, o Leo e o Khouri. Kazbegi é uma região belíssima, cheia de montanhas nevadas e com ótimas oportunidades de trilhas. Devido ao fácil acesso por estradas, é um dos principais destinos turísticos de montanha da Geórgia. Mas eu vinha de montanhas ainda mais incríveis, então meu foco era outro. Esta fronteira Geórgia-Russia era fechada para estrangeiros até poucos anos atrás. Hoje não apresenta grandes problemas, ainda mais para brasileiros, que não precisam mais de visto para a Russia. Mas não pense que é tão fácil assim. Não existe transporte público até o outro lado, tampouco até a fronteira. As únicas possibilidades são alugar um táxi ou ir de carona. Também não é possível atravessar a fronteira a pé, tem que estar com um veículo.
Como estávamos em quatro pessoas, não ficou caro para contratar um motorista para nos levar até Vladikavkaz, capital da Ossétia do Norte-Alânia. Eram somente 35 km, mas nosso motorista teria que fazer todo o tramite de fronteira e voltar. Mal sabíamos o grande negocio que estávamos fazendo!

Military Highway sem transito. Nesta foto também sem as montanhas que chegam a bloquear a visão de tão proximas.
Saímos bem cedo, e a estrada é incrível, como que cortando as montanhas. Alguns cânions e tuneis e logo pudemos observar maquinas trabalhando para liberar as pedras do desmoronamento. As filas de carros iniciaram e descemos para o moderno centro de controle de passaportes georgiano. Muita fila, ou melhor, tumulto. Nada de cavalheirismo, era lei da selva mesmo, onde os mais fortes passavam na frente e atingiam o seu objetivo: sair da Geórgia. A funcionaria da imigração vasculhou meu passaporte buscando o visto russo. Expliquei que não precisávamos e já me preparava para um longo discurso quando ela deu de ombros, como quem dizia, “o problema é teu”!
O nosso motorista já tinha furado a fila dos carros e nos esperava ansioso para partir. Nesta terra de ninguém, já estávamos agradecendo ele, mas nem imaginávamos o que vinha pela frente. Algumas curvas para frente e o transito parou completamente. Na pista para um carro já tinham dois. O nosso motorista, Zico, só deu uma piscadinha e foi avançando na pista contraria. Parava para falar com algumas pessoas que o orientavam. Parecia ter uma ordem dentro daquele caos. Aparentemente esta ordem estava ao nosso favor. Ao furar a fila, poucos contestavam, e quando acontecia, já vinham pessoas defender o Zico. Era como se uma mafia comandasse tudo ali. Qualquer possibilidade, qualquer milimetro possível para embicar na frente de outro carro o nosso motorista ia sem pensar. Em um certo momento já ocupavam toda a pista no sentido contrario. Os carros da Russia não podiam avançar, e dar ré parecia impossível. Apareceram alguns policiais e antes que a coisa complicasse, depois de muita manobra e negociações, conseguimos um lugar na fila propriamente dita. Com certeza economizamos horas de viagem somente naquele pequeno trecho, pois muitos carros não se moviam. Foi aquele alivio de ter seguido com um carro, ainda mais com o Zico, e não de carona.

Estrada congestionada nas duas pistas. Os russos estavam tentando vir no outro sentido.
No posto de controle da Russia, pareciam não saber se precisávamos de visto ou não. O Zico falava bem pouco inglês, mas de certa forma acabava nos ajudando. Nós soltávamos uns “Brasil, Russia Friends! No visa! BRICS, BRICS. Piting and Dilma!”haha “Tourists, Excursion, after back to Georgia”… Deu certo!

Imigração russa e bielorrussa. Interessante que brasileiros precisam de visto para a Bielorrússia, mas não existe controle na fronteira Russia-Bielorrússia.
Para percorrer os 35 quilômetros entre Kazbegi e Vladikavkaz demoramos umas três horas e meia. Chegamos na capital da Ossétia do Norte – Alânia passando por memoriais de guerra, tanques antigos e edifícios estilo comunista. Eu confiante dizia que o Zico poderia somente nos deixar próximo a estação de trem que nos viraríamos. Como percebemos a dificuldade e movimento da fronteira, tentamos já deixar agendado a nossa volta. O Zico parou perto de uns carros e chamou um amigo dele. Paramos para conversar e tentar acertar a data de volta e um preço justo. Neste meio tempo saí para olhar o a cidade, sentir o clima da região. Discretamente eu e o Marcelo tiramos umas fotos, mas isto não terminou bem.

Vladikavkaz

Chegada em Vladikavkaz

Ultima foto antes de ir parar na delegacia

Vladikavkaz
Não demorou muito até um policial se identificar e pedir nossos passaportes. Fez uns telefonemas e apareceu mais um carro cheio de policiais. Queriam saber o que estávamos fazendo ali e quais eram nossos planos. Coitado do Zico, que estava louco de vontade de voltar para a Geórgia. Teve que ir conosco até a delegacia. Entramos, passamos em frente das celas e numa pequena mesa entregamos nossos passaportes e respondemos uma ou outra pergunta. O Zico assumiu a situação e conversava com os policiais. Um bêbado tentava interagir conosco e incomodava os policiais. Ficava entrando e saindo da cela onde tirava umas sonecas e cuspia como se tivesse tirando o pulmão pela boca. Os policiais não gostaram muito, mas não deixou de ser uma atração para nós, já que ficamos um bom tempo lá. Tivemos que nos segurar para não rir varias vezes.
Chegamos na Ossétia na semana do aniversário de dez anos do massacre de Beslan, onde terroristas inguches fizeram mais de 1200 pessoas reféns numa escola, e mataram 334, muitas delas crianças. Não sabíamos se suspeitávamos que eramos jornalistas ou algo do tipo. Já estávamos cansados, quando um oficial nos entregou os documentos e fez uma cara de “aproveitem!”. Sabia que na Russia o registro era necessário, e achei que de certa forma havia sido bom, pois isto já estaria feito. Aceitamos quando o Zico se ofereceu para nos levar até o hotel. Eu tinha anotado o nome de um hotel barato (8 usd por pessoa), Общежитие КЭЧ, e sabia que ficava na esquinas das ruas Karl Marx e Kirov, só isto. Nos surpreendemos quando a antipática senhora que cuidava da recepção negou a nossa estadia lá. “No Tourist!” Tourist problem”, ou algo do tipo, nosso motorista/amigo/interprete traduzia. Também tinha anotado o nome de uns hotéis disponíveis na internet, mas eram caros, somente para uma emergência. Fomos para ferroviária. Em qualquer lugar do mundo existem hotéis baratos perto da ferroviária. O que encontramos não era nem um pouco bom e nem tão barato assim, mas atendia as nossas necessidades. No quarto tinha um papel de parede descascado, um cheiro de mofo e mobilhas da época do Stalin. Por outro lado na recepção havia até wifi. Não pretendíamos gastar tempo no hotel e o Zico estava de partida, então decidimos ficar ali mesmo. Utilizaríamos como base para explorar a região, evitando ter que viajar para outras republicas e ficar procurando hoteis. Descobrimos que nosso “registro” na delegacia não valia para o hotel, e eles tiveram que fazer outro.

Nosso hotel era estilo apartamento, eu fiquei na sala – um luxo!

Novo registro, mesmo depois de ter passado horas na delegacia
Antes de voltar para a Georgia o Zico nos deixou num pátio de onde saem as marshrutkas (lotações), algo como uma “rodoviária”. Nos despedimos e agradecemos muito toda a ajuda que recebemos! Fui tentar entender o preço e os horários do microonibus que iria para Grosny, capital da Republica de Chechênia. A Comunicação era precária, mas dava para ter uma ideia do que estava acontecendo. Enquanto isto o Leo e o Khouri foram pegar informações com uma senhora num guichê. Não sei como seria se eu tivesse viajando sozinho, ou só com a Bibi, mas em quatro pessoas parecia que chamávamos muito a atenção. Policiais viram a movimentação e se aproximaram. “Passport” um deles dizia. Pronto, iniciava mais um longo interrogatório (quando eu digo longo, é muito longo mesmo!). Depois de recolherem nossos passaportes, fizeram uns telefonemas. Apareceu um oficial a paisana que falava umas palavras em inglês. Logo apelidamos ele de “KGB”. Pensamos melhor e achamos que ele poderia entender, então alteramos o nome dele para “Robocop”.
Respondíamos uma ou outra pergunta, enquanto o Robocop recebia instruções pelo telefone. Quando questionado se já havia visitado a Russia o Marcelo teve que falar que sim. O Robocop ficou muito intrigado e queria saber onde tinha ido, se tinha amigos russos… Ficava repetindo perguntas para ver se o Marcelo se contradizia. Calmamente o Marcelo explicava que fazia mais de 25 anos que tinha visitado Moscou e São Petersburgo, que pouco lembrava da viagem. Convencido, o Robocop agora queria saber detalhes da nossa viagem. Comentei que pegaríamos um ônibus e atravessaríamos a Republica de Inguchetia, até a Chechênia, onde pretenderíamos visitar Grosny. “Tourist, excurssion”, repetíamos. Eles se convenceram, e depois de repetir tudo o que faríamos, nos liberaram. Eu ainda tentei pegar o telefone no Robocop. Ele ameaçou dar, mas quis saber porque. Eu gesticulava e tentava explicar que se algum outro policial nos parasse, pediria para ligar para ele. Assim não perderíamos tempo e simplificaríamos as coisas. Ele se negou. Teríamos que se virar sozinhos.
Nos reunimos rapidamente e decidimos mudar de planos. Havíamos perdido muito tempo com todos estes interrogatórios. Estávamos chamando muito a atenção, e poderíamos ter mais problemas. Fui negociar com um táxi para nos levar até Grosny. Depois de algumas contra propostas e muitos números riscados num papel amassado, chagamos num acordo. Chamei o pessoal e entramos no carro. Imediatamente o Robocop sai de um carro de onde nos observava de longe. Se aproximou e questionava: “Vocês não iam de ônibus..?” Santa burocracia! Uma pequena mudança nos planos parecia absurda para ele. Novas explicações, anotou até o nome do hotel onde estávamos e nos liberou.
Era somente nosso primeiro dia no Cáucaso russo e já estávamos exaustos. Por outro lado tudo isto indicava que estávamos viajando bem longe da rota turística e muitas surpresas estavam por vir!

Memorial de Guerra
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