Depois de uma rápida passagem por Tbilisi, capital da Geórgia, pegamos outro trem noturno, até Zugdidi, no oeste do país. Mais uma viagem longa em um trem lento. Chegamos o dia ainda não havia amanhecido e buscamos transporte até a fronteira. Bem, fronteira na pratica, pois na teoria a Geórgia considera a Abecásia como parte do seu território. É um país de facto independente, mas com reconhecimento limitado, mais um dos “Países que não existem”.
A região passou por diversos domínios, existiam principados menores fazendo parte de reinos maiores. Politicamente a Georgia sempre teve uma influência muito grande na região, mas etnicamente e linguisticamente o povo de lá é mais ligado aos seus vizinhos do norte, no Cáucaso russo. Como colapso da URSS a Abecásia quis ser um país, e não somente um território da Georgia.
Chegando próximo do rio Igur, um pequeno posto de controle da Georgia. Quase passamos despercebidos mas nos chamaram e anotaram o número do nosso passaporte. Carroças faziam o transporte até o outro lado, mas fomos caminhando pela pequena estrada e depois por uma longa ponte, onde lá no fundo já era possível avistar uma bandeira da República da Abecásia e barreiras do exército.
Meia dúzia de pessoas formavam uma fila, uns se encostavam na pequena guarita, ao lado de uma cancela fechada. A fronteira ainda não tinha aberto, esperamos um tempo por ali, só fantasiando como seria do outro lado. Quando liberados, andamos pelos corredores de grade e arame farpado até o controle de passaporte em si. Na nossa vez, o oficial perguntava em um inglês sofrível detalhes da nossa viagem. Ele falava alto, quase que gritando, como que se desta forma fossemos entender melhor. Eu tinha anotado uns nomes de hotéis, mas o que falei não ficava bem no centro da cidade e ele ficava fazendo mais perguntas pois a resposta não tinha sido muito precisa.
Imigração feita, fomos negociar um transporte. Existem duas opções: Um táxi direto ou lotação até Gali não muito longe dali, e outra até Sukhumi, capital da Abecásia. Negociamos o valor com um taxista, conseguimos outros passageiros para dividir, e desta forma o preço não ficou muito mais alto do que se fizéssemos em etapas. Já tínhamos um pouco de Rublos russos, moeda utilizada lá, o que facilitou bastante, pois se não existe nenhum comercio na fronteira, imagine uma casa de cambio. A Abecásia tem sua própria moeda, o Apsar, mas é basicamente figurativo, o Rublo que é a moeda corrente.
Fomos percorrendo a estrada, parecia que entravamos em um filme pós-guerra. Tudo abandonado, casas destruídas, já sendo tomadas pela vegetação. Marcas fortes de destruição, como se o cheiro de morte e do ódio ainda estivessem no ar. Fora estas ruínas ao longo da estrada, pouco lembrava que alguém já viveu ali. Por outro lado, o cinza dos destroços quase que desaparecia com tanto verde ao redor, isto para não falar das belas montanhas no horizonte. Muito poucas pessoas, uma região rural quase que esquecida no tempo. Vacas, muitas delas. Pastando e passeando no meio da estrada, que quase não tem movimento. Uma ou outra vila, mas o lugar é desolado. Esta é a região onde a maioria dos georgianos moravam, sendo expulsos em diversas guerras, até serem massacrados numa tentativa de limpeza étnica. Os que sobreviveram fugiram para a o outro lado do rio Ingur, ou atravessaram as montanhas.
Quando o cristianismo chegou na região, os abcasos se converteram. Séculos mais tarde, já sob o domínio Otomano, alguns se converteram ao islamismo. No século 19, quanto a Russia invadiu a região, estes abcasos muçulmanos lutaram pelos otomanos. Com a conquista russa, tiveram que fugir para onde hoje é a Turquia, dentre outras regiões do Oriente Médio. Como a região ficou esparsamente povoada, os russos incentivaram e forçaram a imigração de Georgianos, armênios dentre outros povos. Quem diria que no futuro os Russos apoiariam os Obcasos contra os Georgianos…
Entramos em Sukhumi, e depois de deixar um passageiro, pedimos para nos levar direto na imigração. Tínhamos uma autorização de entrada, com datas específicas inclusive, mas precisa ir até o Ministério de Relações Estrangeiras para tirar o visto propriamente dito. Quando o motorista entendeu onde queríamos ir, exitou um pouco. Fez uns telefonemas, perguntou na rua e nos levou em um prédio do governo. Gesticulava e dizia “Niet, Niet (Não)”. Depois fomos saber que era feriado regional. Estávamos numa região bem central e decidimos ir caminhando mesmo. Passamos por parques e praças, muito arborizados mas sem uma viva alma. Logo chegamos ao State Drama Theatre e na parte principal do calçadão.
Cafés descolados, hotéis, lojas com camisetas e bonés com bandeira da Abecásia, além de quinquilharias que turistas gostam. Era como se existisse um universo paralelo. Claro que tínhamos passado por um ou outro prédio com buracos de bala, mas a realidade ali é outra. Um lugar preparado e acostumado a receber turistas. Antes que imaginem turistas de diferentes nacionalidades, deixa eu ser mais específico: Turistas Russos! A fronteira com a Russia não é muito longe dali, seguindo por uma estrada litorânea, são 140 km ao norte, bem pertinho de Sochi, famosa pelos jogos olímpicos de inverno.
Tinham me indicado algumas “goztinitza”, pequenas pousadas ou casas que alugam quartos. Para nossa surpresa, estavam todas lotadas. Uma disponível queria alugar só para longos períodos. Muito solícitos, tentavam ligar para conhecidos tentando achar uma vaga para nós. Foi quando um turco-abecaso, que falava um pouco de inglês se aproximou para ajudar. Nos recomendou um antigo hotel soviético. Disse que estavam reformando, ainda era de péssimo estado, mas o preço era bom. Fomos caminhando e batendo papo na direção deste hotel. Nos despedimos quando ele chegou perto da sua casa, e meio que por acaso, achamos uma pousada muito boa, ainda em construção também. O preço não era dos melhores, mas negociamos um pouco e nos deixamos ser convencidos pelo proprietário, gente finíssima. Ele falava inglês, seria uma ótima fonte de informações, o lugar era incrível, com um super café da manhã. Nosso cansaço e pouco tempo que teríamos lá com certeza ajudou na decisão também.
Atravessamos a cidade até o pátio onde ficam os ônibus e lotações, bem perto da velha estação de trem. Tivemos que esperar um tempo mas logo saímos sentido norte, primeiro subindo uma montanha e depois beirando a praia.
Avisávamos constantemente os passageiros onde queríamos descer, para ter certeza que não esqueceriam da gente e nos déssemos conta só próximo da Russia. Paramos em Novy Afon, um lugar movimentado perto da calmaria que estava Sukhumi. Cheio de turistas russos, seja indo para as paias com boias, nos restaurantes ou buscando os passeios da região.
Cavernas, lagos, cachoeira e cânion, o antigo forte Anacopia em uma montanha e o Monastério Novi Afon entre as arvores. Região muito bonita, onde os moradores tentam aproveitar o fluxo de turistas e peregrinos. Muitas barraquinhas no caminho que leva até o belo monastério. As montanhas verdes atrás e os jardins floridos na frente deixavam o lugar ainda mais bonito. Já tínhamos ouvido falar bem, mas mesmo assim nos surpreendeu bastante pela beleza (interior e exterior) e grandiosidade do lugar. Na entrada distribuíam lenços para as mulheres cobrirem a cabeça e aventais caso alguém tivesse de bermuda.
A praia mais famosa, Gagra, não fica muito longe, mas depois de passar por um parque e um memorial, resolvemos parar na praia ali na frente mesmo. Tanto os locais quanto as centenas de turistas pareciam pouco se importar se a República da Abecásia tem ou não reconhecimento internacional. Dentre os membros da ONU, Venezuela, Nicarágua, Nauru e Russia reconhecem (Vanuatu e Tuvalu reconheceram mas voltaram atrás). Outros países não membros como Transnístria, Ossétia do Sul e Nagorno-Karabakh também reconhecem, mas no final das contas isto muda muito pouco a vida local.
Perguntando sobre transporte, e cansados de esperar um ônibus de volta, ficamos muito contentes quando um micro-ônibus de excursão russa nos deu carona. O motorista não parava de falar, provavelmente contando histórias do lugar e fazendo piadas, pois o pessoal não parava de dar risada.
Também pudemos aproveitar Sukhumi. Caminhamos pelo longo calçadão na beira do mar, conhecemos o jardim botânico, exploramos praças e mercadinhos e até fizemos degustação de vinhos. Num lugar cheio de russos, não foi novidade termos problemas para pedir comida. Cansados de tentar que nos entendessem, depois de falar inglês, português e até imitar galinha, a solução foi olhar para as mesas ao lado, escolher o prato mais bonito e apontar dizendo, quero este! Até que dava certo.
Conversei longamente com o dono do hotel que ficamos. Perguntava sobre o não reconhecimento internacional da Abecásia, e ele dava de ombros. Na verdade nós só precisamos da Russia, discursava. “O Ocidente acha que precisamos do reconhecimento deles, mas não precisamos, não estamos nem aí. Nossa vida não mudaria nada (…) o império americano e europeu esta em declínio, esta crise mundial só confirma isto (…) enquanto a Russia só se fortalece…” A exaltação russa era grande, assim como é a dependência da Abecásia do vizinho do norte. Sou meio provocativo e questionei porque a Russia não anexava a Abecásia de uma vez. Ele disse que a soberania era respeitada. Mais tarde fui saber que todos os abecasos puderam tirar passaporte russos, bastava mostrar os passaportes soviéticos. Alias, puderam usar os passaportes da URSS até 2011! Praticamente todos tem dois passaportes, e alguns dupla cidadania. Mesmo os que não tem o passaporte russo, podem viajar tranquilamente para a Russia com o passaporte abcáso, só não podem ir para outros países que não reconheçam a Abecásia como país.
Tínhamos notado alguns carros modernos e caros nas ruas, muitos deles em alta velocidade e cantando pneu. Nosso amigo turco-abecaso dizia que algumas famílias controlavam tudo por ali. Talvez por causa disto que tiveram tantos protestos nas ruas meses antes (Abril 2014). Quando fomos tentar tirar o visto ficamos sabendo que o escritório havia mudado de lugar. Conseguimos as direções e faltava perguntar na rua para saber se estávamos no caminho certo. Na nossa primeira tentativa um senhor nos colocou no carro e foi até a porta do Ministério de Assuntos Exteriores. Entramos, sem fila e já fomos atendidos. Um senhor falou brincando “não, não é permitido voltar para a Geórgia”, mas riu antes de nos assustarmos. Pagamos pelo nosso visto e fomos embora. simples assim.
Fizemos a volta em etapas, usando as lotações. Fila na fronteira, eu passei e o Marcelo foi chamado para entrevista. Queriam saber onde tínhamos ido, o que fomos fazer lá mas nada de mais. Tenso mesmo foi quando já tínhamos saído da ultima barreira e resolvemos tirar uma foto. Poxa, um banco de carro jogado num canto para as pessoas esperarem a cancela abrir parecia fotogênico. O guarda não gostou! Chamou outro soldado e recolheram nossos passaportes. Até achei que teríamos que pagar alguma coisa para sermos liberados, mas não. Quiseram ver as fotos da maquina que estávamos usando e pediram para apagarmos umas. Falavam “you jornalist?!” e nós no “niet, sorry, toutrist”. Imploramos perdão por uns minutos e eles nos liberaram provavelmente pensando “turistas estúpidos, por que tirar foto na fronteira!”
Seguimos pela ponte, passamos um posto de controle até a imigração da a Geórgia. O oficial só verificou o nosso passaporte (provavelmente para ver se não vinhamos da Russia, o que é proibido) e nos liberou. Pegamos outra lotação e logo me despedi do Marcelo. Ele iria para a capital, Tbilisi, se encontrar com dois amigos e eu seguiria para as montanhas, com a certeza de que a Abecásia existe!
Pingback: Principado de Svaneti | Saíporaí
Pingback: Que país é este?! – Índice para os países com reconhecimento limitado | Saíporaí
Pingback: Viagem a Geórgia e Armênia: dicas práticas | Viaggiando
Eu tenho um grande fascínio por lugares assim, não sei se deveria sentir isso diante das coisas que acontecem nestes locais, mas eu acho que estes acontecimentos exaltam a importância dos mesmos. Obrigado pela postagem senhor(a).
Muito interessante esta sua viagem , passei por situação semelhente em Kars na Turquia , mes passado ( eu e minha esposa em um restaurante) sem que flalassem ingles ou nos entendessem tivemos que apontar para o prato de outros e sinalizar com o polegar “ok” , rimos muito pois de sisti do ingles e até portugues falavamos. praticamente so havia nós de turistas ocidentais em Kars e em outras cidades, alias o leste da Turquia é pouco visitado, alias estamos planejando para proximo ano Armenia, Georgia, Azerbaijão e os paises que não existem (Naquichevão, Abecassia e Alto Carabaque) estarei acompnhando o seu blog e dicas como as suas são sempre bem vindas
Ola, recentemente eu e minha esposa estivemos no leste da Turquia , mas especificamente em Kars, Ardaham, Dogubayazit , onde inglês e pouco falado. Em Kars enfrentamos situação semelhante em um restaurante,ninguém nos entendia o cardápio era em Azeri , acabamos por mostrar pratos de outros cliente e sinalizar “ok” com o polegar, foi uma situação muito engraçada. Estarei acompanhando seu blog pois para próximo ano nosso planejamento é Georgia, Armênia, Azerbaijão e , Naquichevão, Abecassia , Alto Carabaque , assim todas as dicas serão bem vindas.
GOSTARIA DE SABER MAIS SOBRE ESSE PAÍS… SUCESSO PRA ELES
Bom dia Pablo,
tem mais informações sobre este país no livro “Uma viagem pelos países que não existem”, disponível no site da Amazon.
Alem deste país, tem outras situações bem parecidas de outros não-países que buscam a independência.
Att