Já estava tudo decidido, passagem comprada para nossa próxima etapa da viagem. Mas paresiamos não estar prontos. Já fazíamos planos de retorno para cá, e as viagens que imaginávamos não eram curtas, teriam pelo menos 2 meses, sem repetir os lugares que mais gostávamos. Estávamos cansados, física e mentalmente, mas deixar a Índia não era fácil. A Bibi levantou a possibilidade de adiarmos a passagem e eu topei na hora, afinal parecia fácil só trocar a data. Comprar uma passagem na internet é fácil, se já tiver pesquisado preços não demora mais que dois minutos. Fiquei surpreso ao saber que a troca não poderia ser feita pela internet, somente pessoalmente em um dos escritórios. Verifiquei a lista de escritórios mais próximos, e decidi ir pra Chandigarth, que já seria meu caminho para Daransala. A Bibi voltou para o Ashram. Na saída do hotel tentaram cobrar uma noite a mais. Como existe todo um controle de segurança, e preciso preencher varias papeladas. O recepcionista preencheu tudo, e só assinamos, com a data errada. Quase caímos no golpe deles, mas não parecia logico. Recorri ao meu diário para verificar as datas, mas estava desatualizado. Depois de muita conversa, lembrei que no ultimo dia do Ashram tínhamos tirado varias fotos, e estas tinham datas. Mostrei para o gerente do hotel, e quando este disse que minha maquina devia estar errada vi que era golpe mesmo. Mais uma longa discussão e falaram que poderíamos ficar mais uma noite mas que não devolveriam o dinheiro. Mais empenho e conseguimos os trocados do valor que tinham cobrado a mais. O hotel era muito barato (e bom!!) mas não era uma questão do dinheiro, e sim do mérito.
Umas cinco horas depois (viagem curta para padrões indianos) eu estava chegando em Chandigarth. Falavam muito desta cidade, já que foi toda planejada por um arquiteto francês, alem de ser muito verde. Teoricamente uma digna representante da “nova Índia” toda descolada. Acabei não podendo conhecer muito da cidade, pois logo descobri que o escritório listado no site não existia mais. Liguei para o escritório de Nova Delhi, e me recomendaram ir para Jallander. Achei que era ali perto, mas la se foram mais umas quatro horas. Não cheguei a tempo de ir no escritório, e ficou para o dia seguinte. Foi muito difícil de achar hotel, cidade comercial, estava ou muito caro ou lotado. Acabei arrumando um quarto não muito agradável atras de um estacionamento de bicicletas e triclishaws. Desespero deu ao saber que o escritório não abria aos sábados, e que fiquei esperando la na frente de bobeira!!!. Pelo menos estava perto de Amritsar, cidade que estava nos meus planos, então teria só que inverter meu roteiro. Desci da rodoviária e atravessei a rua para almoçar no primeiro restaurante que vi. Comi um delicioso Punjab Thali, comida da região. Segui ate o Golden Temple onde pretendia me hospedar. Como era aniversario do Guru Arjan Dev, um dos principais gurus dos Sikhs (religião do local, onde o Templo Dourado e o principal local de peregrinacao), tava muito lotado, e não consegui quarto no primeiro dormitório que busquei. Em volta do templo existem vários dormitorios para os perigrinos e tentei outro (Guru Ram Das Sarai), onde consegui um colchão no chão para a primeira noite, mas me prometeram cama para as demais. Queria ficar entre os indianos, mas para manter a ordem e a reputação, fui colocado junto com outros estrangeiros em um grande quarto.
O Sikhismo e uma religião derivada do Hinduismo, mas com diferenças bem marcantes, como o culto a somente um Deus e ser totalmente contra o sistema de castas. Na verdade o Guru Nanak, fundador da religião era um grande pensador, viajou por toda a India, Tibet, Ceilao (atual Sri Lanka) passando pela Pérsia (Iran) e visitando inclusive Meca, na Arabia. Depois de mais de 40 anos ele retornou e fundou a religião, que contem vários aspectos e influencias do Islamismo também. Há quem considere a religião uma especie de filosofia, já que qualquer Deus pode ser louvado em um templo Shikh. Inclusive grandes lideres Sikhs no passado construíram mesquitas, para que a população islâmica da região pudesse seguir sua devoção. Religião bem tolerante e com um aspecto interessantíssimo. Segundo ele, uma pessoa não consegue pensar em Deus se tiver com a barriga vazia, com isto criou as Langars, cozinhas comunitárias, que fornecem alimento gratuito nos templos. O prédio onde ficava meu dormitório era bem perto da gigantesca cozinha/refeitório, e de uma das entradas. Caminhei pelo templo mais de uma duzia de vezes. Bati papo com o pessoal, tomei banho no lago de noite, quando tudo estava mais calmo. Sim de noite, pois fica aberto 24 hs. O bom da proximidade e que já sai descalço, sem ter que se preocupar em deixar o chinelo nos guarda sapatos, ou enfrentar fila.
Ao entrar no templo tem que lavar os pés, e já providenciam uma área transversal ao caminho com água. Homens e mulheres tem que cobrir a cabeça. O templo propriamente dito fica no meio de um lago, onde filas se formam para a visita. Mas ao redor existem outros lugares sagrados e a vista e fantástica, principalmente final de tarde quando o sol esta se pondo e o céu fica dourado, como se o templo estivesse refletido; e a noite, quando fica tudo iluminado. Em alguns horários do dia existe uma procissão com o livro sagrado, e a limpeza do local, um mutirão com todos os devotos ajudando e muito interessante.
Para mim a cozinha e algo a parte. Funciona 24 hs por dia, servindo milhares e milhares de refeições. Eu calculei algo entre 50 e 100 mil refeiçoes diárias neste final de semana movimentado. Tudo na base do mutirão, fieis ajudam a lavar as bandejas, cortar cebola e por ai vai. Filas se formam para entrar nos gigantescos salões, onde as pessoas vão se acomodando no chão em estreitas fileiras. De tempo em tempo fecham a porta para uma limpeza geral, para só depois liberar a entrada de novas pessoas.
Existe uma área separada só para o chai. Fantástica a logística, organização, limpeza. Ótimo lugar para conhecer pessoas interessantíssimas e aprender mais sobre a cultura deles. Alguns aspectos interessantes, como que para os olhos de Deus, tanto um eremita na caverna como um príncipe no palácio estão em igualdade, pois tem funções diferentes (não estimulando a renuncia e desapego por exemplo). Coloca o principal aspecto de Deus no homem e não nos livros e leis.
Punjab, estado desta região, almejou durante muito tempo ser independente. Tentou algumas vezes, mas nunca obteve sucesso. A ultima delas foi em 1984, quando os separatistas foram encurralados no templo dourado, onde foram massacrados e bombardeados. A Indira Gandhi, que ordenou a invasão pagou caro por isto pouco tempo depois, ao ser assassinada pelos 2 seguranças particulares Sikhs.
A região tem uma cultura muito forte, musica, comida, os turbantes, espadas e lanças, que fazem parte da tradição. Povo muito acolhedor e simpático, fez com que me sentisse muito a vontade. Como os dormitórios estavam lotados, centenas de pessoas dormiram no chão, seja no patio dos prédios, na rua ou nos templos. Alguns dos quartos são cobrados, apesar de preços baixíssimos, mas em geral e tudo na base da doação.
Attari, a fronteira com o Paquistão não fica muito longe dali, e fui dar uma olhada na cerimonia de recolhimento da bandeira no final da tarde. E algo bem turístico, um show montado, mas muito divertido. Na verdade e para turista indiano, que e a maioria esmagadora, não para estrangeiros. Como estamos na Índia, filas e milhares de pessoas se aproximavam das arquibancadas perto da divisa dos países (sim arquibancadas!!!). La inicia uma cerimonia, com gritos, danças, provocações com bandeiras e marchas dos enfeitados soldados. Tudo devidamente ensaiado acontecia da mesma forma do lado do Paquistão. Ironicamente uma grande rivalidade e ameaças de guerras, e transformada num show, rentável para ambos os lados. Sim, rentável financeiramente, pois existem lojas de suvenires onde se pode comprar camisetas, canecas, DVDs, etc. Todos com sorriso na cara, jovens dançando no maior estilo Bollywood no meio da rua. Bizarro!!! Apesar de um pouco longo, foi muito divertido. Triste foi ver aquela que e a unica forma de passar de um pais para o outro ao longo da enorme fronteira, e não ir para la. Eu realmente queria fazer Paquistão e Irã, mas fica para uma próxima vez…
De volta a Amstar, como meu óculos de camelô havia quebrado, e resolvi fazer o teste da honestidade entre os estrangeiros. Deixei ele largado no dormitório enquanto fui ao banheiro. Não demorou 5 minutos para ele desaparecer. Interessante como e possivel viajar pelo mundo, lugares paupérrimos sem ter problemas e ser roubado por um ocidental. Mas que ele deve ter ficado de cara ao ver que correu um risco por um óculos que não vai poder usar, deve…
Voltei para Jallander de trem (3 classe para sentir o clima!), e desta vez deu tudo certo com a troca de passagens. Este contra tempo fez com que alem de ter que inverter meu roteiro, o que não tem problema nenhum, eu tivesse que encurtar minha estadia em Amstar, o que doeu, pois adorei o lugar. Peguei um ônibus para Daransala, mas no caminho conheci um estudante, que depois de muita conversa e perceber meu interesse pela cultura e religião deles, me convidou para almoçar na sua casa. Descemos em Hashpuir, pegamos outro ônibus até sua vila. Morava numa casa boa, com um pequeno jardim onde tinham dois búfalos! La chegando me apresentou para o pai e o avo, e se retirou da sala. O pai falava pouco inglês, e o avo bem. A dificuldade e que o avo tinha um problema e sua voz saia pela garganta, o que dificultou um pouco a comunicação…haha Foi proveitoso e divertido, alem de ganhar um delicioso almoço. Consegui diversas informações, e me levaram para conhecer a região rapidamente.
Mas tinha que voltar para estrada, que logo ficou cheia de curvas, ate chegar em Daransala. Já era tarde, e peguei o ultimo ônibus ate Mc Leonganj, um pouco mais para cima da montanha.
Daransala e onde funciona o governo do Tibet no exílio, e também residencia da vossa santidade Dalai Lama. Houvia maravilhas do lugar, que era mais parecido com o Tibet do que o próprio Tibet e blabla bla. Confesso que isto fez com que me decepcionasse um pouco. Nada de cultura tibetana explicita, e sim muito misturada com indiana e principalmente com a ocidental. Parecia que todos os viajantes que estavam na Índia fugiam do calor e estavam ali. Se no sudeste asiático o padrão dos mochileiros era jovem inglês, com cabelos cuidadosamente despenteados, roupas de marcas falsificadas e óculos coloridos, aqui era diferente. Um pouco mais velhos, estilo bixo-grilo ou mamãe quero ser hippie. Muitos dread locks, e muita falsa espiritualidade também. Em vez de bêbados ficavam chapados. Assim como no sudeste asiático, era difícil distinguir um do outro, pois pareciam estar de uniforme. Incrível esta falta de personalidade, necessidade de fazer parte de um grupo. De qualquer forma o lugar e muito bonito, rodeado com montanhas com seus picos nevados, que podiam ser vistos quando não chovia ou estava nublado, o que era comum. Ótimo lugar para caminhadas, um pequeno mas muito bem montado museu sobre o Tibet e invasão chinesa, e templos onde tentam manter e ensinar as tradições tibetanas.
Um dia me sentei na internet e ao lado estava o casal de russos/americanos que conhecemos em Tirunavamalai, no inicio da viagem pela Índia. Jantamos juntos um dia, e batemos papo tomando um chá em um outro. Encontrei novamente também Andy e Sylvia, o casal alemão que ficou ainda mais próximos da gente. Com eles também sai para jantar, ver filmes sobre o Tibet e conversar bastante. O clima frio diminuiu meu ritmo, e aproveitei para terminar de ler Seeing (Ensaio sobre a Lucidez, pois o Saramago é Português!!), meio que continuação de Ensaio sobre a Cegueira, que virou filme estes tempos atras.
Ônibus para Delhi, onde peguei um hotel na área de Pahaganj, o bazar na frente da estacão de Nova Delhi, onde encontraria com a Bibi no dia seguinte. Tava muuuito quente, e com a chegada dela deu só para dar mais uma perambulada, comprar mais umas coisinhas para vender no Brasil e descansar, pois tínhamos que ir para o aeroporto em plena madrugada. Nossa saída foi surreal, com dezenas de vacas dormindo na frente do táxi, em plena capital do pais. Com certeza sentiríamos saudades, mas dois meses e meio haviam se passado, mas tínhamos que partir…
Para pensar:
Nós temos casas maiores mas famílias mais pequenas;
mais confortos, mas menos tempo;
Nós temos mais cursos, mas menos senso;
mais conhecimento, mas menos julgamento;
mais peritos, mas mais problemas;
mais remédios, mas menos saúde;
Nós fizemos o caminho até à lua e de volta,
mas temos problemas em atravessar a rua para conhecer um novo vizinho;
Nós contruimos mais computadores para suportarem mais informação
para produzir mais exemplares que nunca,
mas temos menos comunicação;
Nós tornámo-nos grandes em quantidade,
mas curtos em qualidade.
Estes são tempos de “fast-foods”,
mas de digestão lenta;
Homens altos mas de personalidade “curta”;
Lucros íngremes mas relações superficiais;
É uma época onde se vê muito à janela,
mas nada dentro do quarto.
[The Paradox Of Our Age, by His Holiness the 14th Dalai Lama]