Antes de ir para Cuba tentei pesquisar várias informações sobre o país, através da internet e guias de viagem, conversas com viajantes que já tinham ido para lá, com um brasileiro estudante de medicina que mora em Havana e, cubanos. Queria fazer uma viagem autentica, mas logo desisti. Cuba é extremamente turística e o fato de não existir Casas Particulares em todas as cidades te impede de sair da rota turística, que é bem delimitada.
Por outro lado, Cuba “acontece” em todos os lugares, e o melhor do país não pode ser recomendado ou planejado, aparece ao acaso, entre as atrações turísticas Acabei limitando o tempo na ilha com medo dos custos, mas me arrependi. Para quem não fica indo de atração turística em atração turística a ilha não é cara. Com menos de duas semanas, resolvemos nos limitar em Havana e a província de Pinar del Rio, deixando o centro e leste do país para outra viagem.
Chegamos somente de madrugada, havíamos reservado uma Casa Particular na Rua Industria, Centro Havana. Poucas indicações do local, acabamos acordando os vizinhos antes da dona da casa: Sra Gudelia. Ela com seu roupão, cabelo desarrumado e cara amassada de sono, disse que acabou dando nosso quarto para duas russas, portanto estava lotado e fechou a porta na minha cara. Olhei para a cara da Bibi quase que não acreditando e toquei a campainha novamente. Falei que eu não teria problema em dormir na rua, ou ali mesmo no saguão do prédio, mas que estava com minha esposa, tinha reserva e blablabla. Acho que ela acordou nesse meio tempo, e nos convidou para entrar. Pediu para sentarmos e disse que resolveria a situação. Saiu de roupão tocando em todas as casas particulares que conhecia para ver se tinha lugar para nós, mas em vão. Logo após o Natal, altíssima temporada, tudo estava lotado. A Bibi já queria buscar um hotel, mas concordou quando falei para dormir no sofá. Eu esperei sentado se teria uma solução, mas já imaginava que o sofá cama seria a melhor saída Quando a Sra Gudélia voltou sem achar lugar para nós, preparamos o sofá cama, e a Bibi, para desespero da Gudélia, ainda decidiu que iria tomar banho. Eu já me acomodei na parte do sofá que estava inclinada pelo menos uns vinte graus e capotei.
Uma das coisas que estava na minha lista para conhecer em Cuba era a Santeria, religião afro-americana que tem um parentesco com o Candomblé. Grande foi minha surpresa ao acordar com diversos rostos, potes e bonecos ao lado de onde eu estava dormindo! Uma coisa a menos para eu ter que sair procurando. Já no café da manhã, enquanto a Gudélia se desculpava pela noite anterior (que não nos cobrou, é claro) eu já a bombardeava com perguntas sobre a Santeria, prática que ela era adepta e conhecia muito bem.
Resumindo a história, tudo estava lotado, e acabamos ficando no quarto dela, que foi dormir no quarto do filho. Uma senhora muito simpática, que logo nos sentimos muito próximos. Saímos para caminhar por Havana Vieja, com seus prédios históricos reformados e ruas lotadas. Se Cuba choca muitos estrangeiros num primeiro momento, não pudemos dizer que o mesmo aconteceu com a gente. Realmente tudo é uma questão de parâmetro. Depois de ter viajado para tantos países pouco desenvolvidos, Havana não se destacava no quesito pobreza. O que mais chamava a atenção eram os carros antigos e construções, dando aquela sensação de viagem no tempo.
Ficamos quase uma semana em Havana. Aproveitamos bem o lugar. Adotamos o ônibus bom e barato, como forma de transporte e uma vez ou outra pegávamos os táxis coletivos junto com outros cubanos. Conversamos com muitos em restaurantes, ônibus ou até mesmo na rua. Um simples pedido de informação se transformava em longas conversas, que até sentávamos para não cansar. E assim fomos perguntando a opinião das pessoas sobre o regime, as mudanças, as idéias, sonhos…
Alteramos as atrações mais óbvias com longas caminhadas, deixando que o acaso nos apresentasse a Ilha. Até ônibus errado pegamos! Pena não ter conseguido ir nos treinamentos de Boxe. Levam o esporte a sério aqui, com uma população vinte vezes menor que a do Brasil, o quadro de medalhas é de dar inveja.
Consegui ver os centros organopônicos – plantações de hortaliças. Não aqueles em cima dos prédios, mas muito interessante uma cidade do tamanho de havana quase conseguir se abastecer de hortaliças produzidas localmente.
Véspera de ano novo, Centro Havana estava inacreditável. A movimentação das pessoas, carrinhos de mão onde transportavam porcos amarrados, toda a preparação da ceia, comércio lotado e caixas e mais caixas de cerveja e rum. Tínhamos combinado de pegar uma balada com o pessoal do Couchsurfing, mas a Bibi se assustou quando um vizinho nosso disse que o lugar era baixo nível, que nós iriamos nos estressar.
Iemanjá também é muito adorada pela Santeria. Na virada do ano, as pessoas jogam água pela janela. Baldes de água não só na rua como em quem passa. Muito divertido. Fizemos uma ceia com a Gudélia e um vizinho órfão, que ela meio que adotou.
O único ponto baixo de Havana foi que tivemos nossa câmera roubada de dentro do quarto. Não só pela máquina em si, mas por todas as fotos. Inspirado no livro do Banksy, tinha tirado várias fotos das pinturas revolucionárias nos muros e outdoors da cidade, sem falar nas fotos dos carros, construções e pessoas. Bem, como diz a mãe de um amigo meu, só acontece com quem viaja. Tenho quase certeza que foi o filho da Gudélia. Pior ainda é saber que ele não precisa. A mãe, com a casa particular, onde aluga três quartos a 20-25 CUC cada, o Irmão vende roupas e ganha cerca de 300 CUC/mês, e o pai mora no exterior e manda dinheiro para eles. Só descobrimos quando estávamos de saída para Viñales, em Pinar Del Rio. Sabíamos que perderíamos o dia na Delegacia, e acabamos deixando para a volta, caso não aparecesse.
Pinar del Rio é a província mais a oeste de Cuba, região rural onde se planta grande parte do tabaco cubano. Viñales é uma cidadezinha bem gostosa, no meio de uma paisagem de montanhas maravilhosa. É bastante turística, pelo menos umas 300 casas particulares, mas é uma ótima base para explorar a região. Passeios voltados para o turista são caros, alugar cavalos ou até mesmo bicicletas, mas a região vale a pena. Exploramos fazendas, conversamos com camponeses e fumamos charuto, é claro. As fazendas são muito bacanas, auto-suficientes todas planejadas, com suas hortas, arvores frutíferas (flores também são plantadas para atraírem os insetos), criação de animais, além do tabaco, é claro. Mas o produtor de carne de vaca não pode consumir nem um quilo sequer do seu produto, e tem que avisar se uma vaca morrer. Carne de gado é consumida somente por enfermos, velhos e crianças. Pode parecer indignante, mas se pensarmos que das milhões de crianças que morrem de fome, nenhuma esta em Cuba, mostra que é somente mais uma contradição.
Fomos a um show de musica a noite na praça na frente da igreja, cheio de gente, cubanos e turistas. Nada de musica cubana e sim hip-hop e ragatone. Mesmo nas pequenas cidades existem as Casas da Cultura, com atrações a preços acessíveis para os cubanos. Alias os cubanos são muito ligados a Cultura. Sempre prestigiam a musica e arte em geral. Fora de Havana não vi muitos, mas na capital existem incontáveis cinemas e teatros.
Andando de bicicleta, conhecemos um camponês que tinha uma caverna na sua propriedade. A tal caverna 8. Existem algumas cavernas na região que já tem iluminação, toda estruturada. Esta foi uma caminhada para chegar, e lá dentro só na tocha feita com uma garrafa e querosene. Tínhamos uma lanterna que nos possibilitou tomar banho no rio subterrâneo alem de seguir dentro da água até diversos salões. Os medos da Bibi estão ficando pela estrada!
Mesmo sabendo das maravilhosas praias de Cuba, eu não tinha vontade de conhecer. Achava que existiam coisas mais interessantes para fazer. Mas como não estou viajando sozinho, atendi o pedido da Bibi e fomos para Cayo Jutias. Praia maravilhosa, mar lindo, apenas com um restaurante. Nada daqueles resorts, mas não mudei minha opinião sobre as prioridades. Para mim o que mais valeu foi a conversa com o motorista, que trabalhou anos como engenheiro, antes de virar motorista. Se dizia ultra-capitalista, que faria qualquer trabalho para ganhar dinheiro. Isto não mudava seu sentimento nacionalista e até admiração pelo Fidel. Admiração pela revolução e liderança, não pelo comunismo. Não conhecemos nenhuma pessoa que disse que na época do Batista (antigo ditador) era melhor. Um país que da uma educação de qualidade, porem não cria meios para aplicar o conhecimento produzido.
De uma madeira geral, os mais velhos, que lutaram a Revolução, disseram que muitas vidas foram perdidas para simplesmente abandonar a causa. Os “um pouco” mais novos, lutaram a guerra de Angola, e também tem um sentimento forte com o país. Os camponeses, grandes apoiadores da Revolução, e beneficiados direto pela reforma agrária, de uma maneira geral apoiam bastante o regime, mas fazem suas críticas. Já os jovens são bem mais contestadores, não pelo sistema, mas pelas suas privações. Muitos acreditam nas mudanças, só acham que elas são muito lentas.
O sistema eleitoral, com os “delegados”, é uma espécie de parlamentarismo. Ninguém precisa estar ligado ao partido comunista para se candidatar. As eleições são bem democráticas, mas por outro lado, vai ter uma centralização total em cima dos Castros. Vai entender…
Nos despedimos dos carros de bois, das fazendas estruturadas e autossuficientes daquele clima tranquilo e das montanhas para voltar para Havana. Depois do ocorrido, não nos hospedamos na casa da Gudélia novamente, mesmo sabendo que ela não tinha nada a ver com a história.
Sabíamos que uma ida a delegacia nos tomaria grande parte do dia, mas resolvemos encarar. Mesmo sabendo que dificilmente recuperaríamos nossa câmera. Assim fizemos nossa parte, e ainda tivemos outra experiencia cultural. Foram cerca de sete horas gastas com a policia, desde a nossa apresentação e identificação, passando pelo longo interrogatório, feito por uma policial de mini saia curtíssima (eu nem tinha notado, a Bibi que comentou!). Toda a burocracia, relatos do dia a dia desde que chegamos, identificação de fotografias até a visita na casa da Gudélia, acompanhado de investigadores no seu Lada branco.
Os CDRs (Comitê de defesa da Revolução) podem ser o seu melhor amigo ou pior inimigo. É como se a cada numero X de quadras tivesse um síndico, e as pessoas se reunissem para tomar conta do bairro. A ideia é excelente, e dizem que funcionava muito bem até os anos 80. Mas hoje, com tantos problemas, ninguém da conta de resolver brigas de vizinhos, buracos na rua, dentre outros problemas do dia a dia. Imagine os problemas maiores. Todos se conhecem, e a fofoca corre solta. Portanto não é difícil descobrir as coisas que acontecem. Cerca de 80% dos cubanos estão inscritos nos CDRs. Encontramos inclusive cubanos contra o comunismo inscritos. Eles alegavam que a revolução era popular, e não comunista. Que se quisessem mudar algo, precisavam participar. Falavam que as mudanças estavam acontecendo, mas que tudo demorava pelo menos uns vinte anos para ser atendido…
Para o nosso ultimo dia ainda tínhamos uma visita a fazer. Uma professora, que da aula de história na Universidade de Havana há 40 anos. A filha dela mora em Paris, e é amiga de uma grande amiga da minha mãe. Fomos até sua casa no bairro de Santo Soares onde vive com seu neto. Fechamos com chave de ouro. Pudemos discutir todas nossas impressões e idéias com ela. Esclarecer situações e aprender muitas coisas. Ela não é cubana, mas mora em Cuba ha mais de 40 anos, pois casou com um cubano. Tem duas filhas morando na Europa, seu marido mora no México, mas ela se recusa a sair. Ama o país, e disse que em nenhum lugar no mundo valorizam um professor como em Cuba. Não achem que é uma comunista, muito pelo contrário. Não poupou duras criticas dentre os muitos elogios que fez ao país. Mesmo com a ótima qualidade de ensino, a infraestrutura é péssima, e falta até papel. Seria como agravar a situação dos problemas das Universidades Federais brasileiras varias vezes.
Enquanto jantávamos, um amigo do neto, colega de universidade, chegou com uma mochila cheia de eletrônicos. Ele tem passaporte espanhol e viaja para os EUA para trazer eletrônicos e fazer um dinheiro extra. Disse que vende tudo com muita facilidade.
Nossa anfitriã nos confidenciou que estava com câncer. Disse que recebeu tratamento de qualidade durante um bom tempo, mas que devido ao embargo, não existem peças de reposição para os aparelhos. Chegou a fazer alguns tratamentos em Paris, mas não quer abandonar sua vida em Havana.
Trocamos presentes, e ela nos deu uma cópia do ótimo filme “Habanastation”. Quando estávamos saindo ela nos disse uma frase que caiu como uma luva sobre a nossa impressão da ilha: “Cuba é o país das contradições”.
Cuba é realmente um país fantástico! Apesar de ter gostado bastante de Havana, confesso que o assédio e os trambiques nas suas ruas é um tanto incomodante. Na volta, do tour na parte leste da ilha, no terminal de Santa Clara, acabei arrumando um táxi (que me cobrou bem mais barato que o bus) para me levar à capital. Havia um casal de europeus indo a Viñales. Apesar de não estar nos meus planos, desci em Havana e segui com eles para esse simples lugar. Achei que valeu a pena! Dps de percorrer várias cidades históricas cubanas, uma pausa em meio à natureza foi melhor do que seria o burburinho de Habana Vieja.
Vale mto uma viagem à ilha. Não por suas praias – que são lindas! Mas pra conversar com o povo e conhecer as histórias de cada lugar. Não esquecerei do muchacho de Santiago de Cuba, que me deixou dirigir a sua “máquina 1957”, ou do vendedor de Camagüey que me levou pra jantar na casa dele, msm com toda a escassez de comida que é realidade em Cuba. Foram muitas as histórias!
@João Goulart, nossa que viagem legal que vc fez por Cuba! Parabéns.
@Gi, Muito triste da Dona Iren, né?! Que ano que vc visitou ela? Tenho que mandar um email para ela logo.
O finalzinho do post me emocionou. Bem legal o relato, Gui.
Visitei em 2004. Lembro muito da casa dela, do jantar, da conversa. Foi uma experiência incrível que levo junto comigo na vida. Ela me disse que a grande riqueza da vida eram as pessoas que conhecemos e os contatos que fazemos. Esses contatos que vão nos ajudar no futuro e temos que cultiva-los e incentiva-los. Dinheiro e oportunidades viram a consequência disso.
Achei uma maneira muito bonita de se ver a vida.