O filme “A Costa do Mosquito” estreou na metade dos anos oitenta. Tinha como elenco Harrison Ford, chegou a ter indicação para o Globo de Ouro, e mesmo assim caiu no esquecimento. Hoje não se encontra um DVD do filme. A história original do livro “A Costa do Mosquito” do Paul Teuroux (que escreveu “O safári da estrela negra”, dentre outros ótimos livros de viagens) pode ser encontrado facilmente. Na história, o personagem principal, Allie Fox, tenta fugir do consumo e sedentarismo dos EUA, se mudando para a Costa do Mosquito, onde pretende criar uma sociedade perfeita, auto sustentável e longe dos vícios. Mas no final, tudo se arruína, devido a diversos problemas. A Cosa do Mosquito tem este nome não por causa dos insetos, mas por causa dos seus habitantes, os índios Misquitos. Ela engloba todo o sul da costa atlântica de Honduras e quase toda a costa atlântica da Nicarágua. Não reconhece fronteiras. Seus diferentes povos, línguas e costumes tem mais a ver entre si do que com o resto dos respectivos países. Foi colônia britânica durante muito tempo, além das línguas indígenas, falam inglês (na verdade um creole) e não espanhol. Não é incomum que se refiram ao resto dos nicaraguenses como “espanhóis”. Se Allie Fox, personagem do livro/filme fracassou na sua busca, eu não poderia dizer o mesmo, tendo encontrado o lugar mais interessante da América Central, pelo menos até agora.
Devido a obras na estrada, ao sairmos de Ometepe/Rivas, tivemos que passar em Masaya antes de ir para Granada. Masaya é famosa pelo seu artesanato, vulcão (com mesmo nome da cidade), mas principalmente pela bela cratera de vulcão com um lago dentro, chamado Apoyo. Existem algumas pousadas na região, mas nosso destino era Granada, somente uns 15 Km dali.
Cidade gostosa, com diversas pousadas e restaurantes, arquitetura colonial por todos os lados, além de belas igrejas e museus interessantes. O calor estava fortíssimo, então procurávamos fugir do sol nos horários de pico e passear cedo e final de tarde. Se a comida da Nicarágua já vinha nos agradando, encontramos nesta estilosa cidade um excelente custo-benefício.
De Granada uma rápida passada em Manágua, onde pegamos um ônibus para Santo Tomé, cidadezinha pouco depois de Juigalpa (para que possam encontrar no mapa), já a caminho da Costa do Mosquito. O estilo do ônibus carregado até com camas no bagageiro, superlotado até mesmo nos corredores, davam todo um estilo para a viagem. Dezenas de vendedores subiam e desciam nas incontáveis paradas, vendiam remédio, escovas, música, chocolate além de diversos tipos de comidinhas. Uma espécie de queijo qualho, servido num saco plástico junto com um caldinho, era um dos mais populares e decidimos acompanhar o pessoal. Na hora da fome mesmo, sacolinhas com pedaços de frango, repolho e banana verde frita estavam a disposição. Sobremesa manga verde com sal e pimenta, dente outras diversas possibilidades.
Região meio velho oeste, bem estilo country. Pequenas lojas vendendo selas para cavalo feitas artesanalmente, e muitos chapéus. Minha parada foi relativamente rápida, somente para deixar a Bibi no monastério que ela ficaria nos próximos dias, numa pequena cidade nas montanhas, há uns quarenta minutos dali. Horas depois eu estaria em outro ônibus interagindo com o pessoal, sentido El Rama, ponto final da estrada. Cheguei já de noite, e fui me informar sobre os horários dos barcos. Os lentos barcos de carga, saem somente algumas vezes por semana. O rapaz do “porto” disse que eu teria que pegar uma “panga”, uma canoa motorizada. Tinha visto diversas opções de pousadas, todas muito simples. Aproveitei para pedir uma indicação de lugar para ficar. Ele falou que o lugar que estava era barato e limpo, bem o que eu precisava. Pertinho do trapiche, me facilitaria na manha seguinte quando teria que madrugar. A rua era toda esburacada e com poças d’água. Ao lado corria um pequeno esgoto a céu aberto. Cheguei no hotel pensando que não ficaria, mas os quartos eram bem limpos, lençóis novíssimos, e o preço inferior a três dólares. Resolvi ficar, larguei a mochila e fui procurar um lugar para comer. Cidadezinha escura, meio decadente, mas com um certo charme. Barraquinhas de comida na rua principal, e quando eu me aproximei de uma delas para ver o que tinha para comer, um soldado com sua turma me cumprimenta e pergunta da onde sou. Na hora pensei, ferrou, já me preparei para uma longa negociação e corrupção. Mas eu havia me enganado, e acabamos conversando um bom tempo, quis até me pagar cerveja. Cachorros esqueléticos deitados no meio da rua, mal se levantavam para pegar os ossos que jogávamos nas suas direções, davam um clima de fim do mundo para aquela noite úmida. Logo inicia um vento forte e trovoadas, me despeço dos meus amigos e me recolho no pequeno quarto. Uma chuva fortíssima inicia. As telhas eram de metal e faziam um barulho ensurdecedor. Achei que não conseguiria dormir, mas depois das longas horas de viagem desconfortável e da cervejinha, capotei.
Acordei com o despertador, os galos ainda nem começavam a cantar. Tomei um banho frio e fui com minha lanterna procurar um lugar para tomar um café. Encontrei uma banca de nicaraguense/americano com quem fiquei conversando enquanto tomava e comia algo. Na hora de pegar a “panga” fiquei feliz ao ver que era um pequeno barco de alumínio e não uma canoa motorizada, afinal seriam algumas horas, acompanhando as curvas do Rio Escondido, até chegar em Bluefilds.
O trajeto é muito bonito, mas não confortável. O rio vai se abrindo até se tornar uma lagoa, onde está Bluefilds. A cidade-porto é o centro da região, e pode ser avistada de longe, com uma igreja morava se destacando. Labirinto de ruelas perto do deck até chegar na rua principal. Além de muitos jamaicanos que migraram para cá, muitos escravos fugiram de países vizinhos no passado e encontraram proteção nesta região isolada. O clima de reggae, alegria do povo, pessoas falando creole (um dialeto de inglês falado muito rápido) dão um charme pra o lugar. Mas nem tudo são flores, muito pelo contrário. O fato de ser uma cidade portuária muita prostituição, violência e trafego de drogas. Alias um dos grandes corredores de drogas para chegar no México/EUA.
Alguma pessoas vem até aqui para pegar um barco até Corn Island, ilhas paradisíacas da Nicarágua, mas a maioria prefere voar de Manágua o que encurta a viagem em alguns dias. Apesar de ser um paraíso, minha intenção não era de ir para Corn Island, mesmo com o navio cargueiro saindo para lá no dia seguinte. Se a Bibi tivesse comigo este provavelmente seria nosso destino, bem casal, mas sozinho buscava algo mais cultural.
Peguei uma “panga” até uma pequena cidade, Lagoa das Perolas, uns 50 km ao norte dali. Viagem também muito bonita, por canais que se formam paralelos ao mar. Uma rápida parada numa vila até chegarmos num pequeno pier, onde pessoas esperavam encomendas. Uma cidadezinha astral, com duas ruas paralelas e meia duzia de hospedarias. Lugar gostoso, logo me acostumei com os “Gude-gude” ( good day, good day), “haia” (hey you) dentre as poucas coisas que conseguia identificar do creole. Curtir a região com calma, até juntar pessoas para dividir um barco para ir até Pearl keys, conjunto de ilhotas ao longo da costa norte dali.
Conheci um casal de espanhóis( na verdade catalães) que az trabalhos voluntários ali perto (na verdade umas 10 horas de barco ao sul), e fomos juntos até as vilas Misquitias de Ratipura e Awas, onde tomamos banho na lagoa, e curtimos o lugar.
Me surpreendeu que logo chegaram outros estrangeiros na pousada e assim pudemos alugar um barco. O dia amanheceu cinzento, não parecendo que o programa daria certo. Como a maioria tinha pouco tempo, encaramos mesmo assim. Fomos pela lagoa, passando por pequenos barcos a vela, até chegar no outro lado da lagoa, onde tem passagem para o mar. Um posto do exercito nos surprendeu, onde fizeram até controle de passaporte. Depois foi só lutar contra o vento e ondas, seguindo ao norte. No momento que nos afastamos do continente o tempo abriu e o mar acalmou. As primeira ilhotas começaram a aparecer. Algumas minusculas, outras habitadas por pequenas famílias, outras com construções abandonadas. minha ideia era de dormir nas ilhas, mas sem transporte regular, poderia ficar dias ali antes que um pescador passasse sentido Lagoa das Perolas, então achei melhor não ariscar.
Ilhas paradisíacas, algumas já tiveram estrutura para o turismo, mas existe uma grande disputa para saber quem são os donos das ilhas. As ilhas ao norte são todas habitadas por Misquitos, mas as ao sul dependem de “caseiros” para cuidar. Aproveitamos a praia, mergulhamos e tomamos água de coco, retiradas dos muitos coqueiros que tem por ali. Pique-nique no almoço e mais praia em outras ilhas. Aproveitei para conversar bastante com o Mr Taylor, nosso barqueiro, muito gente fina. Outras pessoas bastante bacanas no nosso grupo também. O tempo mudou bruscamente e uma tempestade iniciou. Nos protegemos na pequena barraca de lona e outros foram para o mar mesmo. Parecia que duraria para sempre, quando meia hora depois o céu limpou. Tempo imprevisível por aqui.
Na volta tivemos que improvisar velas para aproveitar o vento, pois a gasolina estava acabando. no final deu tudo certo, e chegamos a salvo na Lagoa das Perolas. Quase todos do grupo se foram, mas eu queria explorar mais a região. Um pouco mais ao sul está Haulover, vila de pescadores misquitos e creoles. Batendo papo com uma senhora ela me apontou para baixo de uma casa. De longe parecia que tinha vários sacos de cimento, mas quando me aproximei vi que eram tartarugas. São pescadores de tartarugas, tem até licença para isto. Apesar de pescarem para a subsistência, com barcos e técnicas rudimentares, da pena dos bichinhos. Para a carne não estragar, eles mantem os animais vivos, de casco para baixo, com a nadadeira amarradas, e vão matando de acordo com a necessidade.
A vila de Cacabila fica uns 50 km ao norte, onde existem misquitos bem mais tradicionais. Mesmo assim utilizam pequenos barcos, onde a vela é feita de lona plastica. Mais para cima está Orinoco, onde o povo é Garifuna. Cada um dos povos tem língua musicas dentre outros aspectos culturais.
Depois de uns dias na Lagoa das Perolas já conhecia bastante gente. De dia alternava entre os poucos restaurantes, e acabei experimentando o prato tipico da região, tartaruga. Fazem caldo até com a carne que fica no casco, aproveitando tudo de suas pescas. De noite não tinham muitas opções para jantar, portanto fui todas as vezes no mesmo bar/restaurante, onde depois da janta tomava uma cerveja e escutava um reggae com os rastafaris. Alias, em terra de velhos rastafaris, os jovens revoltados são do hip-hop. Eles se reuniam na quadra de basquete, perto da igreja Moravia da cidade.
Chegava a hora de eu ir buscar a Bibi no monastério. Para evitar todas as conexões e longas horas de barco, resolvi encarar a pequena estrada que anteriormente eu nem sabia que existia. Um ônibus por dia parte antes do sol nascer, e viaja a manhã toda para percorrer uma distância não muito longa até El Rama. Não eram oito e meia da manhã quando paramos numa das pequenas vilas que cruzamos. Um “restaurante” servia arroz, feijão, frango… para o café da manhã. Como o dia seria longo, não pensei duas vezes antes de pedir um prato fundo para mim.
Meus três novos amigos pastores nicaraguenses-americanos e salvadorenho-americano tentaram me convencer a me tornar missionários da igreja deles na África. No início levei na boa, mas depois encheram o saco. Acho que eles também não gostaram muito das minhas contestações diretas sobre coisas que falavam, muito menos de eu defender Judeus e Muçulmanos. Pelo menos a viagem passou rápido. Em El Rama, eles já desacostumados com transportes duros por morarem nos EUA, resolveram seguir de taxi. Eu me despedi da Costa do Mosquito, saltando no primeiro ônibus que vi. Paguei uns trocados (o ônibus custa menos de um dólar por hora de viagem) e ao contrário de outras viagens, não conversei com ninguém. Mesmo assim a viagem foi tranquila. Horas mais tarde eu chegava em Santo Tomé, para buscar a Bibi. Trazia comigo um grande sorriso estampado no rosto.