O vale Kalash e o (quase) encontro com os Talibans.

Ninguém sabe ao certo de onde vem o povo Kalash. Uns falam que são descendentes do Alexandre o Grande e de seus soldados, devido a sua aparência “europeia”. Na verdade sempre habitaram os vales do Afeganistão e Paquistão  Toda região ate a India e abitada pelos hindo-europeus, portanto de mesma origem. Os olhos azuis sao muito mais comuns pelo sul da asia do que se imagina.

Todo mundo sabe muito bem de onde surgiram os Talibans. Estudantes de escolas islâmicas  que foram treinados e equipados pelos EUA para atacar a URSS, que na época tinha invadido o Afeganistão  A guerra fria acabou, os Talibas tomaram o poder, mas nao eram mais interessantes para os EUA. Fizeram alianças com a Al Queda, e se tornaram o inimigo numero um do ocidente.

Acordamos cedo para pegar o ônibus Natco. Era confortável (para os padrões paquistaneses), e cada um tinha sua poltrona. A viagem prometia ser longa, e acabou demorando mais que o planejado. Muitas paradas para registro do passaporte, e ate uma rapida parada para almoçar  Nos surpreendemos  pois estávamos em pleno Ramadan e tinham muitos muçulmanos ismailis (que não jejuam) e também xiitas, que em viagens longas quebram o jejum, adicionando dias a mais no Ramadan ao seu final. Apenas os sunitas seguem rigorosamente as quatro semanas.

Aquela paisagem fantástica que estávamos acostumados continuava, com um destaque para o passe Shandur. Chegamos em Mastuj já tarde, e foi só buscar um lugar para dormir e capotar. O Koich veio com a gente, e mais um outro japonês que ele encontrou também veio junto.

Madrugamos novamente e fomos ate a rua principal procurar um jipe que fosse ate Chitral. Conseguimos o banco da frente, mas nao foi menos sofrido. Logo entendemos porque os ônibus não vão a partir dali. Algumas partes da “estrada” era praticamente off road. Barrancos de barro, trechos super estreitos entre pedras e precipícios e por ai vai. Chegamos em Chitral e estava muito quente.

A cidade e bem empoeirada, cheia de gente e as buzinas pareciam ecoar na nossa cabeça  Depois de arranjar um lugar para ficar, fomos fazer o registro na policia local. Super simpáticos  ficamos conversando e vendo as estatísticas das pessoas que visitaram o município nos últimos 10 anos. Foram menos de 400 pessoas, sendo que 3 brasileiros. Nos explicaram que só poderíamos ir ate o vale Kalash com escolta, devido a proximidade do Afeganistão  Estrangeiro e tratado que nem rei por aqui, pois eles não podem correr o risco que alguma coisa aconteça e piore ainda mais a reputação do pais. Eu sou contrario as escoltas, pois acredito que viajando sozinho não se chama atenção  já com uma escolta, caso exista um problema, ele sera grande. Os únicos dois casos de problemas nos últimos 10 anos foram com estrangeiros que trabalhavam em ONGs, e moravam na região durante anos.

Encontramos um casal de franceses que havíamos conhecido em Karimabad, e eles reclamaram bastante da escolta. Mas eles não eram parâmetro  pois tinham uma interação com as pessoas meio conturbada, e pensavam de uma maneira bem unilateral, pareciam que tinham começado a viajar ontem. Demos mais uma volta pela cidade, e com o final da tarde chegando, as barraquinhas de comida ficaram lotadas. Chitral parecia um formigueiro! Estávamos quebrados de tanta viagem, e fomos descançar e bater papo numa ótima varanda.

Centro de Chitran no final da tarde

Ao acordarmos, na frente da nossa porta ja estavam os dois policiais que nos escoltariam. Super simpáticos  sorridentes, mais não falavam inglês  Eram meio novatos, e não pareciam poder nos ajudar muito, mas de qualquer forma, encaramos como uma forma de interação  Caminhamos ate o local onde pegaríamos transporte, e desta vez sob vários olhares das pessoas. Eu estava certo, sozinhos eramos bem mais invisíveis na multidão  Nada de ônibus  e no terreno baldio estava o Koich, o outro japonês e mais dois policiais aguardando acharar mais pessoas para fechar um transporte.

O Vale Kalash na verdade são três pequenos vales. Escolhemos ficar no ultimo deles, Rumbur, mais isolado e tipico. Nos outros ja tem muito kalash que se converteu para o islamismo, e a vila cresceu muito, perdendo suas caracteristicas proprias. Umas tres horas depois estávamos no vale escolhido. Pequeno, bonito, com casas agrupadas em diversas partes das montanhas. Ficamos na casa de uma família Kalash, o que ja foi facilitando para aprender sobre seus costumes e tradições.

Um fato curioso e que todas as mulheres “impuras” tem que ficar numa casa especifica, ate estarem puras. Impura significa menstruada, e quando vai ter filhos. Perguntei o porque e ri muito com a resposta. Segundo nosso anfitrião, as mulheres quando entram no período  ficam estressadas, nervosas e causam problemas na família  Uma casa só para elas e a solução  Ele ainda complementou que neste período  elas também não tem muito “uso” hahah. Os homens todos concordaram que uma casa desta poderia ser introduzida em outros lugares com grande sucesso!!!!

Os franceses tinham comentado que a escolta ficava grudada o tempo todo, mas não foi bem assim. Estavam todos descansando e aproveitei para sair com um dos filhos do casal. Andamos pela vila, conheci o improvisado campo de criket, mas não pudemos jogar por falta de bola. Fui na casa de um primo deles que tinha casado na noite anterior. Conheci algumas pessoas e descobri que e muito comum meninas casarem com 13 ou 14 anos. Andei praticamente a vila toda, passei pela parte muçulmana  e fiz o controle de documentos sozinho. Depois de horas vi um dos soldados da nossa escolta num posto de controle no topo de uma montanha. Só abanei e ele tranquilamente abanou de volta. O lugar e único  isolado do mundo, com características bem peculiares. O lugar era tao calmo, que horas pareciam dias. Novamente tínhamos uma varanda, com vista para a parte sul do vale, onde fazíamos nossas refeições.

Caminhando pela vila

Parte da vila Rumbur

Os outros dias, como saímos todos juntos, acabamos não escapando da escolta. Os Kalashs ficavam revoltados com a escolta, e tinham razão  Fomos na escola, e as crianças tinham que ficar olhando para soldados com metralhadoras enquanto interagiam conosco. No inicio estavam tímidas  mas como só tinha um professor para quatro salas, tomamos conta de uma delas. Incentivamos e logo elas estavam cantando, fizemos a maior bagunça. Depois das musicas tipicas, os meninos nos acompanharam em gritos de Brasil, Brasil; Pakistan, Pakistan e e claro, de Coxa, Coxa!!

Escolta e crianca nao combinam!

Caminhamos entre as casas, fomos convidados para tomar chá  e bater papo. Muitos Kalashs são bem tímidos  mas outros adoram uma foto e interagir. Caminhando pela vila, muitas vezes acharam que eu era paquistanês  por causa da roupa tipica. Rimos muito com isto. Apesar da vila ser pequena, ela é espalhada, então podíamos dividir as caminhadas por regiões.

Fomos no topo de uma das vilas, lugar sagrado para eles, onde tem uma ótima vista, inclusive do Afeganistão  que fica a dois dias de caminhada. Crianças vieram interagir, e outras pessoas contar sobre a tradição do povo Kalash (que e politeísta . Sei que acabamos em outra casa, e quando vi já tinham colocado toda a roupa tradicional na Bibi. Nos ofereceram bastante vinho, bebida bem comum por aqui, o que e bem atípico para o Paquistão, onde e proibido bebida alcoólica.

Se tem uva tem vinho…

Bibi Kalash

Uma noite acordamos com a pousada tremendo. Saímos do quarto e vimos que foi um curto, mas intenso terremoto. Voltamos e um tempo depois tremeu novamente. Dias depois vimos que chegou a 5.4 graus, e com epicentro não longe dali. Foi um susto, mas não foi o único.

Na manha seguinte eu e o Jonny queríamos ir para Bumburet, a principal vila. O Jonny queria mandar noticias e eu visitar o pequeno museu que conta das tradições locais. Foi aquela dificuldade para arranjar transporte, já que nenhum carro passava. Já pensava em ir a pé, ou substituir o programa por alguma parte da vila nas montanhas aos arredores, quando vi um clima de tensão entre os soldados da nossa escolta. Eles conversavam entre si e pareciam não saber muito bem o que fazer. Vieram me explicar que Talibans atacaram um posto de fronteira do Paquistão  matando dezenas de soldados. Outras dezenas de Talibans também foram mortos. Tudo isto a 60 km de onde estávamos  Tínhamos que evacuar a área o mais rápido possível, pois ali não teríamos proteção se comparado com Chitral, a cidade ao lado que chegamos, que contava com uma forca militar que esmagaria os talibans em um minuto. Mas já tínhamos perdido um bom tempo buscando transporte sem sucesso, e agora não seria diferente. Tentamos mais um pouco e seguimos a pé mesmo, com os soldados nos escoltando. Depois de um tempo apareceu uma caminhonete, e pegamos carona. Estávamos nas intermináveis curvas com precipício  quando de trás de uma curva cega, vem um senhor correndo e gritando. O pessoal da caçamba traduziu para nos, mas a Bibi e Jonny estavam na boleia, e não sabiam o que estava acontecendo. Logo depois seguiram três explosões. Os dois quase morreram de medo, achando que os talibans estavam ali na frente!!! Na verdade estavam só dinamitando umas pedras para aumentar a pista. Cômico, mas acho que eles se borraram…

Taliban?

Cacadores de Taliban!!!

Chegando em Chitral, fomos na policia entender sobre a segurança  Nos tranquilizaram, e foi algo bem pontual na fronteira. O exercito era o alvo. Muitos paquistaneses nos contavam historias que não era o Taliban e sim a OTAN. Segundo eles a OTAN quer sempre culpar o Taliban para justificar uma invasão  Mesmo com a garantia dos policiais de que a estrada era segura, fomos dar uma olhada nos voos. Não são voos comerciais, e sim um pequeno avião do correio, mas vendem espaço se sobrar acentos. Eu não estava muito satisfeito com a decisão do grupo, mas ate que seria uma boa experiencia voar entre as montanhas. No final das contas o escritório estava fechado, e acabamos indo de ônibus mesmo. Os soldados já estavam nossos amigos, e apesar de em Chitral andarmos sozinhos, depois do incidente eles nos acompanharam ate o ônibus de manha. Sabíamos que era uma viagem longa, mas não imaginávamos o que vinha pela frente…

No inicio foi tudo igual, aquela paisagem fantástica  e ate uma estrada relativamente boa. Depois a estrada piorou, iniciamos uma subida sem parar ate o passe Lawari. A temperatura caiu, e o friozinho foi bem vindo. A paisagem ia mudando e logo fomos interceptados por uma caminhonete.  Soldados entraram no ônibus  e achamos que era só mais um controle. Desta vez não pediram nossos passaportes e sim os documentos de todos os passageiros que nos acompanhavam. Nos explicaram que estávamos entrando no município de Dir e que nos escoltariam a partir dali.

Onibus escoltado

furando fila!

La fomos nos com uma escolta, na frente do ônibus  Iniciei um papo com o motorista, que não estava gostando nada da situação  A escolta não estava deixando ninguém entrar no ônibus  o que daria um grande prejuízo  Passamos por vilas, muitas delas cinematográficas  Mulheres de burcas azuis, mercados movimentadíssimos  e ate um engarrafamento de carros e animais misturados. Para meu desespero e vergonha, nossa escolta ate ligou a sirene. Agora sim poderíamos ser um alvo. O motorista virou para mim e disse. “Ali do outro lado moram muitos talibans”. Eu sabia que passaríamos bem perto da fronteira com o Afeganistão  e concordei, falando: “Ah, do outro lado das montanhas já e o Afeganistão ” Ele disse: “ não, do outro lado do rio.” Era um rio pequeno, praticamente seco, cheio de pontes, e comecei a odiar ainda mais a sirene. O motorista comentou que todo mundo sabe, mas ninguém consegue controlar. Imaginei que deve ser uma situação parecida com o trafego na favelas do Brasil. Ele continuou com um discurso pro-taliban. Afirmou que a explosão da mesquita que ocorrera semanas antes nunca seria ação do Taliban, pois estes eram religiosos, e não atacariam uma mesquita, numa sexta-feira, em pleno mês sagrado do Ramadan. No passado ate guerras eram interrompidas neste período  portanto mesmo os paquistaneses que adoram uma teoria da conspiração (tipo que o Bin Laden ja morreu ha quatro anos), mostra que tem alguma coisa estranha.

Mudávamos de distrito, e as escoltas mudavam. Iniciou uma serie de revezamentos, foram sete no total. Nos aproximávamos de uma caminhonete parada, nossa escolta parava, e a nova entrava na frente do ônibus  Os passageiros estavam se divertindo, se achando super importantes. Um deles falou ao Joao e Marco que foi uma das viagens mais legais que ele já fez haha. Quando cruzamos cidades maiores, ganhamos algum tempo escapando do congestionamento. E assim seguimos  adiantar horas d viagem, com paradas so para rezar, ja que comer não era possível por causa do jejum. Comíamos nossos mantimentos discretamente, e ninguém reclamou.

Chegamos perto da moderna auto estrada e nossa escolta parou. Só abanamos e seguimos pela estrada de três pistas cada lado, de dar inveja as estradas brasileiras. Com o por do sol paramos para a oração e desjejum. O motorista e os passageiros estenderam um tapete em frente ao ônibus  comeram frutas e sucos e rezaram. Algumas filas de carro pararam atras fazendo o mesmo. Todos riam do dia que passou e nos ofereciam insistentemente comida. Chegamos tarde em Rawalpindi, pagamos um pouco mais para diminuir o prejuízo do motorista e fomos buscar um lugar para descansar!

fim do Jejum