Guyana, na língua indígena, significa “terras de muitas águas”. Um país colonizado por ingleses, onde dificilmente você vai lembrar que está na América do Sul, pelo menos na sua capital, longe das florestas. Aliás, você será desculpado caso nem lembre do nome da capital desse nosso vizinho. Porém engana-se quem pensa que brasileiros não vão para lá. Pode não ser pelo turismo, mas tem muitos brasileiros se aventurando pelas terras de muitas águas…
Como utilizei milhas, as conexões não foram das melhores. Passei um bom tempo no aeroporto de Guarulhos, antes de seguir para Boa Vista, com escala em Manaus. Cheguei já eram três da manhã. Não valeria a pena pegar um hotel, nem quis incomodar meu amigo Max, que mora lá, pois partiria logo cedo. Dormi profundamente no novo aeroporto. Um casal de neozelandeses também utilizaram o aeroporto como dormitório até o só raiar.
Peguei um táxi até o terminal de Caimbé, de onde saem os táxis coletivos para as fronteiras da Venezuela e Guiana. Comi tapioca no mesmo local onde no ano anterior tomei café da manhã antes de ir para a Venezuela, mas desta vez iria para outro país. São 125 km de estrada asfaltada até Bonfim, na fronteira com a Guiana. O táxi coletivo te leva até Lenthen, do lado da Guiana, então vale a pena, pois um ônibus comum, mais um táxi vai dar quase o mesmo preço (30 reais).
Brasileiros não precisam de visto para a Guiana nem Suriname, mas precisam para a Guiana Francesa. Decidi viajar com meu passaporte italiano, mas um viajante comentou que teve problemas para trocar de passaporte na fronteira Guiana francesa-Suriname, então eu tentaria trocar já na saída do Brasil, mesmo que tivesse que pagar um “Tourist Card” para entrar no Suriname como italiano.
O oficial da imigração da Guina não entendeu porque eu não tinha o carimbo de saída do Brasil no passaporte italiano. Expliquei que tinha dupla nacionalidade e ele pediu para eu esperar e depois ir falar com seu superior em uma mesa. Inventei uma história de que era italiano, mas tinha nascido no Brasil, que a própria embaixada italiana recomendava que utilizasse o passaporte italiano fora do Brasil (…) e que iria para a Guiana Francesa. Ele só abanou a cabeça e com um largo sorriso disse: Welcome to Guiana! Nessas alturas o táxi já tinha me abandonado, provavelmente pela pressão dos outros passageiros, que iriam pegar um pequeno avião que estava para sair.
Passei pelos taxistas do outro lado da fronteira e parei na beira da estrada, onde acenei para o primeiro carro que passou. Um brasileiro, indo comprar pneus dentre outras coisas em Lenthen, me deu carona e contou entusiasmado de como tinha ouro fácil na Guiana. Fui em algumas lojas com ele até ele me deixar no centro, se é que existe centro nessa pequena cidade estilo velho oeste. Ele me avisava, cuidado, você vai se apaixonar. Vai trazer tua família para viver aqui. Ouro, muito ouro. Fácil de ganhar dinheiro. Expliquei que gostava de natureza, queria conhecer a cultura mas ele insistia. Em Irabuta, 560 km daqui, tem sete cachoeiras, lindas, bem do lado do garimpo…
Me despedi dele e fui trocar uns reais por guianese dolar. Logo descobri que os gdolares estão meio em falta, os garimpeiros estão segurando para manter a cotação alta. Se comprar nas lojas, vendem produtos na cotação 1 real para 100 GD, mas se for trocar por dinheiro, consegue 85 no máximo 90 por um real. Troquei somente o suficiente para chegar até a capital, Georgetown.
As “Navetes”, vans que atravessam o país até Georgetown, só saem quando lotadas e já faz algum tempo que ônibus não fazem mais esse trajeto. Tinha a esperança de arranjar outros passageiros, ou de pegar carona com um caminhão, mas logo vi que não seria tão fácil. De qualquer maneira não deixa de ser um período de “desintoxicação” onde logo percebemos que estamos longe de casa sem nenhum controle da situação. Uma navete falou que tinha passageiros, que quem sabe sairiam antes. Acabei indo com eles, voltei para o lado brasileiro, onde fiquei esperando por horas com garimpeiros até dar o horário para sair. No final das contas foi bom entrar na viagem e escutar diversas histórias do garimpo e de vidas.
O transporte sai mesmo entre 17:30 e 18 horas. A pequena estrada é toda de terra e umas três horas depois para em Annai, onde existe uma armação de madeira com redes para dormir. Existem pequenas vilas ali perto e estruturas onde usam de saída para o ecoturismo na região. Conheci um suíço que estava voltando das vilas e falando maravilhas. Depois outras pessoas me falaram ser muito mais interessantes que os destinos amazônicos de Brasil-Equador-Peru. A NaGeo elegeu como um dos destinos para ecoturismo em 2014. Mas como todo lugar de difícil acesso, é bom preparar o bolso. Complicado de sair das rotas montadas para o turismo, gastasse tempo e muito dinheiro. De qualquer maneira dizem ser bem recompensador.
A parada às 21 horas é estratégica. Capotei na rede (tinha dormido a noite anterior no avião e aeroporto) até às 3 da manhã, quando pegamos estrada novamente. Mais horas de estrada, agora não mais savana e sim mata fechada da reserva de Ikorama, até a balsa que inicia a travessia às 6 da manhã. Iniciou uma chuva fina e dava para perceber que a estrada já estava bem mas molhada. Quanto mais ao norte viajávamos, mais molhada e esburacada ficava. Passamos por mineração, regiões de extração de madeira e controle de passaporte. As histórias dos garimpos sempre nos acompanhavam e não poderia ser diferente. Meus companheiros tinham marcas no corpo. Um tinha perdido o olho, outro parte da perna e haviam passado boa parte da vida procurando ouro.
Quando nos aproximamos da área urbana, já no início da tarde, uma forte chuva começou. Muitas mesquitas e templos hindus se destacavam ao lado das pequenas casas. Chegando no centro da cidade, notamos que tudo estava debaixo d’água. Pessoas andavam com botas para poder atravessar as poças e algumas ruas somente de barco mesmo. Isto que o período de chuvas ainda não tinha chegado.
A primeira impressão foi de caos, em meio a uma arquitetura inglesa, algo surreal. A navete nos deixou em uma rua bem brasileira, com anúncios de restaurantes em português, igrejas evangélicas, hotéis, anúncios de compra de ouro e prostituição.
Como chovia muito, acabei dividindo o táxi com o suíço, que ia ficar em um dos hotéis que tinha marcado para ver. Hotél simples, em cima de um bar restaurante (17 usd para duas pessoas). Nada de descanso, fui tomar banho e sair para encontrar um couchsurfer que tinha feito contato umas semanas antes. Ele tem um clube do livro em um café onde se encontram nas tardes de sábado. A chuva estava fraca, mas foi difícil chegar lá com as ruas alagadas. Ia tentando contornar as áreas alagadas, dando a volta nas quadras e foi bem complicado chegar sem se molhar.
O encontro estava no final, conversei um pouco com o grupo e depois fiquei batendo papo com o Vidya. Ele é de origem indiana, assim como metade dos guianeses. Foram trazidos pelos ingleses ainda no século 19, grande maioria do estado de Bihar. A outra metade de guianeses é de negros, existindo uma pequena minoria de indígenas e chineses, porém pouco representativa. A sociedade e a política se dividem mesmo entre negros e indianos. Pude aprender um pouco mais sobre o país e a cultura local. Voltando para o hotel ainda tomei uma cerveja com o suíço. Após duas noites, finalmente poderia dormir bem, certo? Provavelmente, só não esperava que a música no bar em baixo do meu quarto estivesse tão alta. Mas no final das contas estava tão cansado que acabei dormindo de qualquer maneira.
Tinha me programado para visitar a Kaieteurr Falls, uma das cataratas mais incríveis do mundo. Como não dispunha dos 5 dias para ir de jipe pela estrada, tinha pesquisado sobre como ir de avião. Troquei emails com uma agencia que cobrava 130 usd. Tinha medo de não ter companhia para ir comigo, mas não reservei pois não sabia como estava a estrada do Brasil até Georgetown e se chegaria a tempo. Me falavam que demorava de 16 a 26 horas até Georgetown e não quis arriscar pagar correndo o risco de náo chegar. Acabou que estava lotado, não tinha mais espaço no pequeno avião. Existia a possibilidade de ir em outros aviões, pagando quase o dobro, mas achei que não valia a pena. A cachoeira é linda, majestosa, mas já tinha tido a experiência de uma cachoeira isolada cercada por florestas, que foi o Salto Angel. Achei que valeria mais usar o tempo para explorar a cidade e conhecer a cultura, sem contar que com a chuva poderia não ser uma boa ideia voar naquele velho avião.
Quando a chuva dava uma trégua me aventurava pela cidade. Cheguei na catedral Anglicana de St George bem na hora da missa. A idéia era conhecer esta igreja que é uma das maiores estruturas de madeira do mundo, mas com o entusiasmo de todos que lá estavam acabei ficando. Um bonito coral, público praticamente de negros, tirando um ou outro indiano. Vieram perguntar meu nome e me apresentaram no final da missa, contando que estava viajando por terra do Brasil até a Guiana Francesa…
As ruas continuavam alagadas, mas a água tinha baixado um pouco. A cidade fica no nível do mar. Os holandeses construíram muros de contenção (mais de 400 km) no rio e no mar e por isto fica difícil da água escoar, principalmente com muita chuva e sujeira entupindo os canais. Era para o calçadão ao longo do muro de contenção estar cheio de pessoas no domingo, mas não com o mau tempo, é claro. De qualquer maneira fui conferir. Andei também pelo centro, que estava semi deserto. Só nas regiões das lojas que tinha mais movimento. O restante parecia um local meio abandonado. Muitas pessoas gostam de fazer o estilo gangster-rap americano, o que não ajudou muito neste clima geral de cidade abandonada.
Passei pelas principais construções históricas em madeira da cidade, quase todas do século 19, até chegar no mercado Stabroek, com sua torre com um relógio. Mas até o mercado não estava em total atividade, então voltaria no dia seguinte. Pena que os dois shows que aconteceriam em um parque também foram cancelados pela chuva.
O ritual da noite anterior se repetiu. Cerveja com o suíço e música e barulho atrapalhando meu sono. Pelo menos o final de semana tinha terminado.
Como estava viajando com o passaporte italiano, precisava providenciar o meu visto para o Suriname, que pode ser solicitado na embaixada. Fui lá, dei entrada na papelada e me entregaram a tarde. Providenciei transporte até o Suriname, que sai todos os dias entre 4h e 4:30h da manhã. Como a chuva finalmente parou pude explorar mais a cidade, comer nos pequenos restaurantes indianos, visitar os lugares que não eu tinha podido aproveitar bem com a chuva. Encontrei também muito mais sorrisos que no dia anterior. Georgetown não é uma cidade que podemos chamar de acolhedora, mas estava bem mais simpática que no domingo deserto-chuvoso-Gangsta, além de ser bastante interessante culturalmente
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O Vidya me convidou para o lançamento de um documentário que um amigo dele fez, chamado Copyright Guyana. Foi em uma casa tradicional, toda reformada e decorada, que funciona como um centro cultural. Vários artistas estavam lá para prestigiar e discutir o assunto. Nestas alturas o Vidya ficava mostrando para todos o livro da Rota da Seda que eu tinha dado de presente para ele. Foi muito divertido, muitas pessoas bacanas e um cocktail caprichado.
Não prorroguei muito a noite, pois o transporte para o Suriname passaria me pegar às 4 da manhã. Mesmo sendo segunda-feira a musica estava alta e o bar movimentado. Definitivamente não escolhi o melhor lugar para ficar. Era o agito da cidade, aberto 24 horas por dia, com todos os tipos de pessoas. De qualquer forma, estava tão cansado que dormi pesado, acordando só com o despertador.
Aguardava uma van e me surpreendi quando descobri que o transporte até a fronteira era um carro todo “tunado”. Entrei no carro sob o assobio de prostitutas dizendo, já vai? Não gostou da Georgetown? O pior é que eu tinha gostado, mas tinha que ir…